Título: Reconstruir ou não? É hora da dura discussão
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/09/2005, Internacional, p. A12

O autor, geofísico, é professor-adjunto da Escola de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade Colúmbia, leciona e faz pesquisa sobre administração de risco de desastres. Escreveu este artigo para 'The Washington Post' . É hora de nadar contra a maré. O discurso público depois da passagem do Katrina segue o seguinte caminho: primeiro, salvamos vidas e fornecemos alguma assistência básica às vítimas. Depois, limpamos New Orleans. E depois reconstruímos a cidade. A maioria das pessoas vai concordar com as duas primeiras. Mas devemos reconstruir New Orleans, 3 metros abaixo do nível do mar, para que seja varrida novamente? Alguns acham que podemos levantar e fortalecer os diques para proteger melhor a cidade. Mas eis aqui algumas verdades desagradáveis: quanto mais altas as defesas, mais profundas as inundações que provavelmente se seguirão. O atual clima político não é propício para que argumentos científicos sejam ouvidos antes que as decisões políticas sejam tomadas. Mas não fazer isso leva ao tipo de caos que estamos vendo agora.

Esse não é um desastre natural. É um desastre social, político, humano - e em menor grau, de engenharia.

Para muitos especialistas, é um desastre que estava para acontecer. Na verdade, o Katrina não é nem o pior caso. Se o olho do furacão tivesse caído um pouco mais a oeste da cidade (em lugar do leste, como aconteceu), a velocidade do vento e o aumento de tempestades costeiras associado teria sido maior em New Orleans (e menor em Gulfport, no Mississippi). A cidade teria sido inundada mais rapidamente e a perda de vidas teria sido maior.

Que fatos científicos precisaremos analisar antes de tomar decisões políticas, sociais e econômicas confiáveis sobre o futuro de New Orleans? Aqui vão dois. Primeiro, todos os deltas de rios tendem a se consolidar quando sedimentos depositados durante durante as enchentes são compactados e transformados em rocha. O delta do Rio Mississippi não é exceção. Na primeira metade do século 20, o Corpo de Engenharia do Exército foi encarregado de proteger New Orleans das recorrentes enchentes naturais. Ao mesmo tempo, o corpo manteve o rio (e alguns canais relacionados) em leitos definidos. Essas medidas defensivas bem intencionadas evitaram o transporte natural de sedimentos para as áreas de depósito geológico. A terra protegida e a cidade em crescimento afundaram, uma parte dela ao ponto em que está agora, 3 metros abaixo do nível do mar. Com o tempo, algumas das defesas foram tornadas mais altas e fortalecidas para acompanhar o depósito de terra e proteger contra inundações e tempestades. Mas as defesas não foram desenhadas para proteger a cidade contra um ataque direto de um furacão categoria 5 (na escala Saffir-Simpson), ou um de categoria 4 aterrissando na região oeste da cidade.

Segundo, o nível do mar em todo o mundo subiu menos de 30 centímetros no século passado e vai subir de 30 centímetros a 1 metro até o fim deste século. Sim, há dúvidas de quanto subirá exatamente. Mas não há dúvida na comunidade científica de que a elevação no nível mundial dos mares vai se acelerar.

O que isso significa para o futuro de New Orleans? Funcionários do governo e especialistas de universidades vêm dizendo há anos que em um século New Orleans talvez não exista mais. Ponto final.

Está na hora de enfrentar algumas realidades geológicas e começar uma desconstrução cuidadosamente planejada de New Orleans, avaliando o que pode ou precisa ser preservado, ou verticalmente levantado e, se o trabalho for viável, quanto gastar nele. Uma parte de New Orleans pode ser transformada em uma "cidade flutuante" usando plataformas não muito diferentes das plataformas de petróleo de alto mar ou, em curto prazo, em uma cidade de casas-botes, para permitir que as enchentes entrem nos espaços vazios com sedimento fresco.

Se concretizada, essa Veneza americana ainda precisaria de proteção contra as piores tempestades. A restauração de mangues e pântanos entre a costa e a cidade precisaria ser cuidadosamente planejada e executada. Muito recursos de engenharia teriam de ser aplicados emsistemas para ancorar construções flutuantes de modo a evitar o caos durante as tempestades. Quanto às instalações de produção, refinamento e transporte de petróleo, zonas de armazenamento teriam que ser estabelecidas para protegê-las do impacto direto das tempestades costeiras.

Muitas famosas cidades costeiras antigas desapareceram ou são hoje apenas sombra da antiga grandiosidade. Partes da antiga Alexandria sofreram com os depósitos do delta do Nilo, e terremotos e tsunamis derrubaram o famoso farol da cidade, uma das sete maravilhas do mundo antigo.

É hora de essa avaliação de risco científica e quantitativa se tornar um espaço de planejamento de uso de terra costeira e urbana para evitar que esses desastres aconteçam novamente. Políticos e outros não devem fazer promessas vagas de uma New Orleans segura. Uma cidade 3 metros abaixo do nível do mar, e afundando, não é segura. É hora de desconstruir de modo construtivo - não de reconstruir de modo desconstrutivo.