Título: Atraso para o saneamento
Autor: Mauro Arce
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

Diante da situação politicamente complicada e vulnerável em que se colocou o governo federal nos últimos meses, há muitos que defendam a elaboração de uma agenda positiva que garanta a governabilidade até as próximas eleições. Este caminho pode ser não apenas meritório como indispensável, mas é também oportuno saber de que agenda se trata. Alguns, por exemplo, que privilegiam o tema da reforma continuada do setor público, incluem na lista de prioridades a discussão do Projeto de Lei 5.296/2005, que busca reorganizar o setor de saneamento. Trata-se de uma escolha apressada: se este é um exemplo de agenda positiva, começamos mal. Por oportuno, informe-se que não há base alguma para acordo em torno do documento, que tramita em regime de urgência no Congresso sem ter passado pelas comissões técnicas, apesar das 800 emendas recebidas. Uma vez que o projeto aposta no primado local - o município seria o poder concedente e a ele caberia a atribuição do planejamento das ações de saneamento e da fixação de tarifas -, alguém pode argumentar que as resistências provêm das companhias estaduais de saneamento e dos governadores dos Estados, e teriam natureza toscamente corporativa. A acusação faz parte do jogo político; substantivamente, não tem valor algum.

O projeto não permite acordo porque é ruim e anacrônico. É ruim porque ignora a questão de como o setor se deve financiar. É anacrônico porque restabelece nas mesmas velhas roupagens a discussão eterna e estéril do setor de saneamento entre estadualistas e municipalistas, ou entre operadoras estaduais dos serviços e operadoras locais. Assombração recorrente do regime militar, o Plano Nacional de Saneamento (Planasa) ainda é a herança fática e cultural que oprime o cérebro dos profissionais do setor como um pesadelo. A má interpretação do pesadelo torna desconfortável o sono.

Afinal de contas, o que fez o Planasa? Ante a notável expansão da população urbana e de suas demandas por infra-estrutura pública, criou a vinculação de recursos do FGTS ao setor de saneamento, pôs a sua administração num banco de desenvolvimento (BNH) e incentivou, em marcha forçada, o surgimento de companhias estaduais, as únicas habilitadas a receber os recursos financiados. O esquema fechado tinha o tom da época, mas não é tudo, e ouso dizer que nem sequer é o começo. O pressuposto do Planasa e a chave de seu sucesso foram a agregação de mercados, antes mesmo de qualquer outra providência.

Ao regionalizar mercados, juntaram-se áreas rentáveis e não-rentáveis, permitindo que umas financiassem as outras, com o apoio de uma fonte própria de recursos e liberdade relativa quanto a aportes fiscais. Tratava-se de uma heresia? Apenas para quem observa pouco a vizinhança, porque os setores de energia e telecomunicações faziam e fazem rigorosamente o mesmo, a única diferença localizada na concessão federal destes serviços. Assim, juntou-se viabilidade de mercado com o interesse público da prestação universal do serviço. Os resultados cada um vê como quer. Alguns afirmam que as companhias estaduais prestam serviços ruins e que o setor vive em crise permanente. Em 1960, pré-Planasa, 42% da população urbana brasileira, ou 13 milhões de pessoas, era atendida com sistemas de água; em 2000, o atendimento era de 90%. Em 40 anos, 110 milhões de novos usuários foram incorporados ao atendimento, quase duas vezes a população da Itália. Avançou-se em esgotamento sanitário? Menos do que deveria, mais do que se tem falado. De toda forma, nos EUA e na Europa, o tratamento de esgotos foi impulsionado em larga medida por recursos fiscais. Aqui, quem faz investimentos de porte em tratamento, como a Sabesp, e não é a única, usa recursos próprios e financiados, pelos quais paga regiamente.

Quanto à prestação dos serviços, há boas operadoras, estaduais e municipais; mas há más operadoras também, de ambos os lados. Seria surpreendente, um verdadeiro espanto, se uma única forma de organização dos serviços reunisse soberanamente todas as virtudes. A flexibilidade na organização da prestação de serviços é mais que desejável; é mesmo uma meta, inclusive com a participação maior - hoje é residual - de capitais privados. Pulverizar mercados, porém, seria um desastre. A separação de áreas rentáveis das não-rentáveis e a conseqüente impossibilidade de transferências das primeiras para as demais somente poderiam ser compensadas em duas hipóteses. Ou por um sucesso sem precedentes, geograficamente extensivo, de consórcios de municípios e Estados, segundo nova legislação recentemente aprovada, os quais aprovariam generosa e voluntariamente as transferências compensatórias necessárias no âmbito territorial do próprio consórcio; ou por ampliadíssimos aportes de origem fiscal, provenientes do Tesouro.

Consórcios são bem-vindos, mas se trata de mecanismo subsidiário a um setor que necessita de estrutura mais firme, que reduza incertezas, aclare horizontes e atraia investimentos relevantes. Quanto aos recursos fiscais, com base na cândida afirmação de que o setor de saneamento é prioritário desde agora e para todo o sempre, parece haver uma aposta na sua intensa disponibilidade. Seria bom combinar com os russos, isto é, com a área econômica, que parece ter outra noção de como deve ser mantida a estabilidade fiscal.

Além do mais, como prioridade efetiva requer comprovação com números, e não com verbo, basta lembrar que as companhias estaduais de saneamento desembolsarão este ano algo em torno de R$ 1 bilhão de PIS e Cofins. Apenas a Sabesp pagará R$ 360 milhões, ou metade do seu investimento previsto para todo o Estado de São Paulo. Há cinco anos, esta conta era de R$ 120 milhões.