Título: ´A sociedade não nos vê, somos invisíveis´
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Metrópole, p. C8

A Justiça brasileira trata Helaine, Ana Paula e Francisca como condenadas por homicídios que juram não ter cometido. Estão presas há mais de dois anos no Cadeião de Pinheiros. Suzane von Richthofen é ré confessa da morte dos pais, tramando o crime e ajudando na execução. Está solta. Nenhuma dessas quatro mulheres foi julgada, porque a Vara de Execuções da Capital vive lotada de processos. As três primeiras custam a entender por que não têm os mesmos direitos que Suzane. 'A sociedade não nos vê, somos invisíveis', arrisca uma delas. O Brasil subscreve a Convenção Americana de Direitos Humanos. Para bons advogados, significa obter a liberdade para um preso que ainda não foi condenado, por maiores que sejam as provas contra ele, inclusive a confissão. Os defensores de Helaine Handreia Ferreira do Nascimento, Ana Paula dos Santos Moreira e Francisca Daiana dos Santos não conseguiram até hoje o direito de elas serem julgadas num período razoável.

Helaine tem 31 anos. Está presa há 2 anos e 7 meses sob a acusação de matar a tiros um inquilino de uma casa alugada da mãe. Afirma que estava em casa quando o crime ocorreu e diz ter sete testemunhas a seu favor. A amante da vítima acusou Helaine e seu irmão de terem feito os disparos. A polícia ouviu uma e levantou a ficha de Helaine - duas sentenças cumpridas por tráfico de drogas.

Era uma possível criminosa. 'Já tive três advogados e gastei R$ 12 mil com eles', diz Helaine. 'O que acho deles? Porcaria nenhuma. Gastei o que tinha e ainda estou aqui.' Ex-despachante, Helaine é uma negra de estatura média, musculosa, tatuagem no braço e voz determinada, quase impositiva. Mas se entristece quando fala dos dois filhos. 'Eles choram lá fora e como mãe não posso fazer nada. Se fosse uma bimilionária (sic), não passaria um dia presa.'

SEM DATAS

Quem não conta com bons defensores é obrigado a esperar na prisão pelo julgamento, muitas vezes a perder de vista. Das três entrevistadas na sexta-feira pela reportagem do Estado, só Francisca sabe o dia de sua audiência: 27 de abril de 2006. Até lá, levará a rotina de uma presidiária. Na ala feminina do Cadeião de Pinheiros, há 1.266 presas, 544 condenadas e 21 em semi-aberto. As demais esperam pela Justiça.

A cabeleireira Francisca tem 21 anos e já foi dançarina em programas de TV. Cabelos trançados, pele branca, magra e baixa, ela vive numa ala protegida da cadeia para afastá-la de outras presas. A madrasta, que tinha ciúmes do marido e é ré confessa, a acusou de ter ajudado na morte de uma vizinha. Para piorar, o pai, que só conheceu aos 18 anos, também a acusou pelo crime. Hoje, quem paga sua advogada é a família adotiva. Já gastou R$ 15 mil.

Na instrução do processo, o juiz determinou que fosse realizado um exame de DNA para saber se Francisca é mesmo filha do homem que a acusou de ter participado do homicídio. 'Não estou me preparando para nada. A Justiça está muito lenta e ninguém me informa de coisa alguma.' Depois de dois anos presa, sente pena dos pais adotivos, aqueles que nunca a abandonaram. 'Se uma pessoa da família corre por nós, é tratada como uma presa.' As mulheres representam 4% dos encarcerados no País.

São pouco menos de 10 mil cumprindo regime fechado, semiaberto e provisório. Ao contrário dos homens, a maioria das detentas está em cadeias. São locais sem condições mínimas, não oferecem educação ou trabalho. Poucas têm advogado público. No Cadeião de Pinheiros, há mais de três meses o diretor José Gonzaga Pereira da Silva Marques requisita a presença de um. O único apoio para elas vem da Pastoral Carcerária, como o da teóloga Heide Cerneka, que incansavelmente as visita. 'Nunca tive dinheiro para pagar minha defesa.

Por isso recorri à Pastoral Carcerária', explica Ana Paula, presa há 2 anos e 3 meses. 'Não conheço nem meu advogado do Estado. Já fui três vezes ao fórum, mas só voltei de lá sem julgamento.' Hoje, essa morena, cabelos tingidos de loiro e raspados nas laterais, sente-se perdida. Revoltada até. 'Deixei de acreditar na Justiça.' Ela é acusada por uma homicida de ter ajudado na morte de um rapaz.

Preferia tirar um bonde, isto é, ser transferida mesmo sem julgamento para um presídio. Ao menos teria voltado a estudar. 'Vou passar mais um Natal na cadeia.' Desde que Suzane foi solta, a palavra injustiça ganhou mais um sentido para as detentas.

Ela representa a diferença de tratamento que pobres e ricos recebem quando estão presos. 'Por que ela foi solta e os dois irmãos Cravinhos, não?', indaga Helaine. 'Ela tinha grana. Eles são como nós, pobres.' Sua colega Francisca acrescenta: 'Se disserem que teremos de ficar ao lado de um cachorro, é onde ficaremos.

'Suzane merecia estar solta? Para as três detentas, a resposta surpreende. Sim, merecia. Mas, perguntam, quando chegará a vez delas?