Título: A vida de Suzane fora das grades
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Metrópole, p. C8

Cabelos quase sempre presos em um discreto rabo-de-cavalo, ora desconfiada, ora feliz, Suzane Louise von Richthofen vez por outra se arrisca a sair pelas ruas de São Paulo. Nunca foi reconhecida em suas incursões públicas pela cidade, com 10,7 milhões de habitantes que correm de um lado para o outro. Ainda assim, ela evita ser vista demais - e se esquiva de situações que poderiam ser consideradas afrontosas, como a de se esbaldar em baladas. Setenta e quatro dias depois de ter sido colocada em liberdade por uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, a garota loira que aos 19 anos confessou ter tramado o assassinato de seus pais vive o que os juristas gostam de chamar de 'tentativa de ressocialização'. Enquanto espera pelo julgamento no Tribunal de Júri, vai retomando a sua vida. Solta aos 21 anos, com a tonalidade dos cabelos mais escurecida, Suzane saiu da cadeia e deu de cara com o debate nacional provocado pelo crime que cometeu e pelo castigo que merece. Ex-estudante de Direito, ela acompanha as discussões sobre seu caso com certo interesse. E acontece de chorar quando vê uma argumentação pesar para seu lado. Há alguns dias, foi às lágrimas ao ligar a televisão no programa Superpop, da apresentadora Luciana Gimenez, e ver o jornalista Marcelo Resende fazendo uma crítica inflamada às centenas de pessoas que aderiram às comunidades que a apóiam no site de relacionamentos Orkut. Ofendida, ela custou a ser consolada.

Enquanto esteve presa, Suzane - chamada de Su pelos mais próximos - contou com o apoio da avó paterna, Margot Hahmann. A avó chegou a entrar com pedido de recurso, alegando que precisava de cuidados, e a neta era a única que poderia fazer isso. Em 2004, Margot morreu, aos 80 anos.

Agora, Suzane não conta com o apoio do que sobrou de sua família. Mas tem uma pequena e empenhada legião de amigos. São pessoas que a mantêm longe do assédio da imprensa, arrumam maneiras de sustentá-la e hospedá-la - e acreditam que ela tem direito a refazer sua rotina longe das grades porque teria cometido o crime por influência dos irmãos Cravinhos. Entre os amigões está Denivaldo Barni, procurador jurídico da empresa Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa), onde o pai, o engenheiro Manfred, ocupava cargo de direção. Nos dois anos e sete meses em que Suzane esteve presa, Barni e sua família foram visitá-la com regularidade. Hoje ela se refere a ele como 'paizão'.

Aos poucos, Suzane tenta retomar contato com o irmão, Andreas, de 18 anos. Desde que foi solta, conseguiu falar com ele duas vezes. É uma operação difícil. Andreas, que chegou a visitá-la na prisão e divulgar nota dizendo que a havia perdoado, agora anda arredio. Mora com a avó materna, Lourdes Abdalla, e o tio, o médico Miguel Abdalla. Ambos querem que Suzane pague pelo crime que cometeu e encorajaram o rapaz a abrir um processo para deserdá-la. A conhecidos, Suzane disse acreditar que, aos poucos, vai vencer a resistência da família em aceitá-la.

ASSOMBRAÇÕES DA PRISÃO

Em liberdade por conta de uma tecnicalidade jurídica, Suzane tem o futuro incerto e o presente desorganizado. Ainda não sabe o que pode fazer com a sobrevida que conseguiu na Justiça até ser julgada - e ainda tenta retomar uma vida comum. Seus documentos e bens, como a carta de motorista e o Gol amarelo que ganhou dos pais e usou no crime, por exemplo, estão com o tio que não quer vê-la. O passado na prisão - e a perspectiva de voltar para lá - é um dos maiores assombros da protagonista do crime que mobilizou a nação.

Na cadeia, Suzane enfrentou pelo menos duas rebeliões em que era o alvo preferencial das companheiras de cárcere. Na Penitenciária Feminina do Carandiru, chamou a atenção de outras presas que queriam sacrificá-la durante um levante. Suzane foi salva por uma chefe da carceragem que teve tempo de trancá-la na enfermaria com um cadeado duplo, antes de fugir. Passou uma noite inteira encolhida em um canto, ouvindo gritos e ameaças do lado de fora. Transferida após esse episódio para o Centro de Ressocialização Feminino de Rio Claro, enfrentou outro pesadelo. Em mais uma rebelião, foi outra vez salva por uma funcionária que, mesmo amarrada a um botijão de gás, se recusou a dizer onde ela estava escondida.

LONGE DOS CRAVINHOS

Quando foi cometido, em 2002, o crime de Suzane gerou debates intermináveis sobre os esqueletos que podem existir no armário de uma família aparentemente feliz e a respeito dos limites da loucura. Bonita e bem-nascida, ela se juntou ao então namorado, Daniel Cravinhos de Paula e Silva, e ao irmão dele, Christian, para planejar a morte dos pais, o engenheiro Manfred Albert von Richthofen e a psiquiatra Marísia von Richthofen. A ação foi rápida, coisa de 20 minutos.

Na noite de 31 de outubro, Suzane checou se os pais estavam dormindo no segundo andar de uma confortável casa no Brooklin, zona sul de São Paulo. Então, abriu a porta da frente, acendeu a luz do corredor e sentou em uma sala. Daniel e Christian entraram, atacaram o casal com barras de ferro e usaram toalhas molhadas para asfixiá-los. Roubaram R$ 8 mil, um punhado de dólares e seguiram para uma operação-despiste. Suzane e Daniel foram para um motel, passaram em um cybercafé para pegar o único irmão dela, Andreas, e voltaram para casa. A estudante chamou a polícia. Oito dias depois, confessou o crime. Disse que matou os pais por amor, porque eles não aceitavam seu namoro.

Com o passar do tempo, o debate sobre o caso foi tomando ares jurídicos. Suzane e os irmãos Cravinhos foram denunciados por duplo homicídio triplamente qualificado - motivo torpe, meio cruel e impossibilidade de defesa da vítima.

Podem pegar de 24 a 62 anos de prisão. Em 2003, o Tribunal de Justiça determinou que os três deveriam ser levados ao Tribunal de Júri porque o caso preenche os requisitos de prova de materialidade - já que houve a morte das vítimas - e confissão de autoria em juízo. Por 3 votos a 2, o STJ decidiu que as razões da prisão preventiva de Suzane - facilitar as investigações, garantir a ordem pública e assegurar sua integridade física - já não fazem sentido.

Por isso, determinou que ela espere julgamento em liberdade e abriu uma discussão acalorada sobre até que ponto a letra fria da lei pode se sobrepor ao bom senso. O júri popular que vai decidir o destino de Suzane ainda não tem data marcada. 'Pode demorar anos para acontecer, porque obedece a duas filas: a que prioriza réus que estão presos e a dos que estão soltos, por ordem de chegada', explica o promotor responsável pelo caso, Roberto Tardelli, do 1º Tribunal do Júri.

Daniel e Christian - que tiveram pedido de habeas-corpus rejeitado anteontem - devem ser julgados antes, porque continuam na prisão. Suzane e os Cravinhos não andam longe apenas na situação jurídica. Ela, que antes declarava ter encontrado na família do ex-namorado um amparo emocional que não tinha em casa, já não quer vê-los. Desde que foi solta, não procurou os pais de Daniel, Astrogildo e Nadja - a quem já se recusava a receber na prisão.

É uma disposição que se reflete na sua linha de defesa. Ela já não sustenta que ajudou a tramar o assassinato dos pais por amor - mas que se deixou influenciar por uma iniciativa do ex-namorado.