Título: Um intelectual alça a voz
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Notas e Informações, p. A3

Quando um intelectual toma partido - ou se engaja, como foi moda dizer - não são poucos os seus dilemas. Eles serão tanto maiores quanto mais próxima for a atividade do criador de cultura, em sentido amplo, das questões em torno das quais gravita o seu engajamento. Não se imagina, por exemplo, como as convicções políticas de um matemático ou de um astrofísico possam interferir nas suas altas indagações, colocando em rota de colisão o ativista e o cientista. Já nas situações em que o campo de trabalho e os valores políticos são contíguos, o imenso conflito potencial de interesses - entre a lealdade à causa e a lealdade à verdade - exige do estudioso ou artista os mais rigorosos compromissos éticos para não sacrificar esta última no altar profano da primeira. Qualquer que seja a sua área de atuação, porém, os praticantes da cultura que escolheram ser intelectuais públicos - formadores de opinião, portanto - não podem se furtar a um dever indeclinável: o de colocar o seu talento, os seus conhecimentos e o seu prestígio a serviço da crítica, mesmo e principalmente quando o que sabem que precisa ser criticado são as próprias idéias, práticas, organizações e pessoas com as quais se haviam identificado. Não há mérito especial em criticar o que já não se apreciava, mas há que ter fibra moral para criticar abertamente aquilo com que se tinha notória afinidade - e arcar com o contra-ataque vingativo dos criticados. No Brasil do mensalão e do desmanche da aura de pureza do PT, o caráter de um pensador que se considera e é considerado progressista se mede pelo destemor de falar o que lhe dita antes a consciência do que a conveniência.

Há poucas semanas, esse desafio entrou em cena no ciclo de palestras O silêncio dos intelectuais, promovido pelo Ministério da Cultura - um evento concebido antes dos escândalos e por eles propelido ao noticiário político. Boa parte do destaque ficou por conta da polêmica provocada pelas evasivas da filósofa Marilena Chauí, que durante anos encarnou talvez melhor do que ninguém o papel de "intelectual orgânica" do partido de Lula (cuja aversão aos intelectuais é igualmente conhecida). A espantosa declaração de Marilena segundo a qual "o verdadeiro engajamento exige muitas vezes que fiquemos em silêncio, que não cedamos às exigências cegas da sociedade" - quando tudo o que a sociedade exige, com absoluta lucidez, é que os políticos sejam decentes -, mereceu duras respostas de seus pares.

O filósofo Sérgio Paulo Rouanet, por exemplo, falando em tese, disse que o pior silêncio é "o dos omissos, dos pusilânimes". O geógrafo especializado em relações internacionais Demétrio Magnoli observou, referindo-se expressamente a Marilena, que "a interrupção da crítica condena o PT a repetir a trajetória descrita no passado pelos partidos comunistas (dos quais se afastaram, por isso mesmo, algumas das melhores e mais honestas cabeças da cultura ocidental do século 20). Mas, em matéria de coragem moral e visão desanuviada do petismo, poucas manifestações, oriundas da esquerda, hão de se comparar ao artigo Por que me ufano do meu país, do escritor e ensaísta João Silvério Trevisan, publicado quinta-feira no Estado. Eis um libelo de quem não pode ser acusado, como diria Chauí, de ter caído numa "armadilha tucana".

"O PT significou o auge das qualidades de nossas esquerdas. E dos seus defeitos também", argumenta o autor, militante da antiga Ação Popular (AP). É uma seita arrogante e presunçosa, "com dogmas, profetas e um Messias: Lula". Como o partido único dos bolcheviques russos, fez dos movimentos sociais seus reféns e de muitos intelectuais, subservientes correias de transmissão das teses do "comitê central". No poder, aponta Trevisan, confundiu-se com o governo, perpetuou a doença nacional de tirar vantagem de tudo, diluiu as suas promessas em projetos pífios de transformação e consumou alianças espúrias. Agora, "tentar manter Lula como um mito intocável é manter a ilusão da verdade revelada", critica. "Não é justo nem para o presidente nem para o Brasil. (...) Nossas esperanças políticas não precisam de Messias."

Ele é otimista: acredita que, a partir da crise, o País pode se repensar. Desde que - a ressalva se impõe - os intelectuais ligados ao PT façam a sua parte, em vez de calar diante do "espantoso esquema da corrupção" de que fala Trevisan.