Título: A marca da decadência americana
Autor: Nathan Gardels
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Internacional, p. A15

Richard Sennett, professor da London School of Economics, é um dos mais importantes especialistas americanos em raça, classes e cidades. Seus livros incluem Carne e Pedra, Autoridade e, mais recentemente, A Corrosão do Caráter. A seguir, trechos da entrevista. O que querem dizer os saques, ilegalidades e até atiradores que vimos após a passagem do Katrina? Nenhum ato anti-social parecido aconteceu nas zonas atingidas pelo tsunami no sul da Ásia.

Nos EUA, há um fenômeno sociológico peculiar que não está presente nos lugares atingidos pelo tsunami. Durante muito tempo, foi verdade que os negros só apareciam como parte da vida cívica quando algo dava errado. Parte do problema é que há uma longa história de invisibilidade dos negros pobres. O dano emocional do não reconhecimento é corrosivo. Quando as pessoas são tratadas como invisíveis elas tendem a responder de um modo que, digamos, não é muito bonito de ser visto. Uma espécie de inundação psicológica de raiva é solta, que é uma resposta a décadas do que eu chamo de "feridas de classe escondidas". Essa dialética da invisibilidade e raiva sociais é o que leva aos saques e outros comportamentos destrutivos. Apesar da pobreza, as vítimas do tsunami no sul da Ásia eram visíveis. Em vez de raiva, eles demonstraram uma enorme solidariedade depois da catástrofe.

Em que medida o desastre de New Orleans revelou os custos de um domínio público esgotado?

O que aconteceu em New Orleans não foi um evento. Foi o ponto final de um longo processo de degradação da vida cívica dos EUA e do desaparecimento do Estado. O que vimos em New Orleans não é uma estupidez burocrático de curto prazo em um esforço de resgate. O que me preocupa é que a culpa vai ser personalizada, se Bush ou algum governador ou prefeito fez isso ou aquilo certo ou errado. Tudo isso pode acabar como a resposta frustrante ao 11 de Setembro. Procuramos alguém para culpar, então, atacamos o Iraque, embora fosse um exagero. Mas a verdadeira culpa é estrutural. Minha esperança é que, em vez disso, deveria haver uma discussão sobre como restaurar o poder do Estado em todos os níveis. A inabilidade em lidar com essa crise é um dos primeiros sinais de decadência dos EUA. Não no sentido do Império Romano, mas no de uma inabilidade para enfrentar a realidade. Uma falta de realismo se apoderou dos EUA, de sua política estrangeira até sua política urbana.

Que tipo de discussão sobre a estruturação do domínio público deveriam haver?

Vamos começar com as cidades americanas. Elas deveriam ser mais integradas espacialmente. Negros pobres podem se tornar invisíveis nas cidades. Cada vez mais, suas vidas cotidianas acontecem longes dos espaços habitados pela classe média branca. Fora da visão, fora do pensamento. Isso foi ilustrado de uma forma muito preocupante pelo bem-intencionada governadora da Louisiana. Ela não podia imaginar que muitas pessoas não tinham carro para sair da cidade ou um cartão de crédito para ir até um hotel! Na Europa, o debate seria, ironicamente, como incluir os anônimos pobres. A cultura americana, especialmente a de esquerda, aumentou tanto o valor da diferença que é difícil formular políticas para todos os cidadãos como essencialmente iguais. Em vez disso, a discussão nos EUA imediatamente se volta para o que significa ser negro e pobre em vez de o que é devido aos cidadãos como cidadãos. A desintegração espacial levou a literal estupidez de alguns líderes americanos no sentido grego - ignorância do outro.