Título: Seqüelas que o 11/9 deixou na alma
Autor: Michelle O'Donnell
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Internacional, p. A20

Se havia alguém apto para o angustiante trabalho de recuperação de corpos no marco zero (o que restou do World Trade Center depois dos ataques terroristas), esse alguém era o bombeiro Tom Kelly, um ex-marine especialista em escavações subaquáticas que passou a maior parte de sua carreira salvando pessoas de incêndios e acidentes. Ali, no entanto, não salvou nenhuma. Um braço, uma perna, um pedaço de couro cabeludo, sapatos com pés dentro, um corpo sem cabeça são alguns dos restos que Kelly encontrou nas longas horas em que esteve no local. Ele raramente dormia. Quando conseguia, acordava freqüentemente com pesadelos. Ele se tornou deprimido e suicida e começou a tomar atitudes arriscadas - incluindo, confessa, o uso ocasional de cocaína. Em janeiro, foi pego num teste de drogas no seu quartel, no Queens, e suspenso. Agora, corre o risco de ter a carreira encerrada e, pela lei do funcionalismo, perder o direito à pensão. "Que pessoa em seu juízo perfeito ignoraria os avisos?", escreveu Kelly num diário no começo deste ano.

Pela avaliação feita em fevereiro por um psiquiatra do Safe Horizon, um centro de tratamento sem fins lucrativos, o bombeiro sofre de estresse pós-traumático. Mas o próprio Kelly admite que boa parte do seu problema foi criado por ele mesmo. Colegas, porém, consideram-no uma das baixas latentes do 11 de Setembro, um socorrista cuja incapacidade de processar os horrores que viu trombou com a política de tolerância zero dos bombeiros em relação ao uso de drogas.

Uma política que recrudesceu após o expressivo aumento de relatos de abuso de drogas na corporação depois do 11 de Setembro. Os bombeiros apanhados uma vez usando drogas devem ser demitidos, a menos que tenham se adiantado e relatado seu problema.

O Corpo de Bombeiros pondera que a maioria dos 49 bombeiros demitidos, ou listados para tal, por problemas com drogas e álcool nos últimos dois anos são jovens que não trabalhavam para a corporação em setembro de 2001. Mas uma parte deles é de bombeiros veteranos, vistos como trabalhadores sólidos, sem problemas disciplinares anteriores, cujo uso de drogas pode estar relacionado ao trauma de 11 de Setembro.

Um deles, na manhã do 11 de Setembro, se esquivava dos corpos que caíam para ajudar a estabelecer um posto de comando no saguão da torre norte. Outro é um bombeiro de um batalhão que perdeu toda uma companhia naquele dia. Em 12 de setembro de 2004, um dia após as cerimônias para os 2.749 mortos na catástrofe, ele procurou a unidade de aconselhamento da corporação em busca de ajuda para o agravamento de um problema com drogas. Avisado de que teria de se inscrever num programa de aconselhamento em domicílio, vacilou. No dia seguinte, foi apanhado num teste de drogas e em outubro, depois de 19 anos de serviço, demitido.

Autoridades dizem que, depois de mais de 2 mil testes, o pequeno número de bombeiros apanhados é um indício de que a política é razoável. "É consenso", afirmou Francis X. Gribbon, um porta-voz da corporação, "de que o uso de drogas não cabe numa ocupação tão perigosa". Mas profissionais de saúde mental questionam se é apropriado endurecer a política num momento em que a corporação está enfrentando um possível aumento no abuso de drogas. "Como alguém de fora, fico chocado com essa política sumária", diz James Pennebaker, psicólogo da Universidade do Texas. "De certa forma, vemos a saúde mental como algo sob o controle da pessoa, ao passo que a saúde física não."

Em Oklahoma City, depois do atentado de 1995, um estudo revela que os bombeiros que bebiam começaram a beber ainda mais na tentativa de lidar com sua angústia. A cidade resistiu em aprovar uma política de tolerância zero mesmo quando reforçou o serviço de aconselhamento. "A política como um todo foi criada para ajudar nossos rapazes", diz o major Kim Woodring, supervisor de recursos humanos do Corpo de Bombeiros de Oklahoma City.

Segundo as autoridades, a tolerância zero funciona porque é um forte elemento de dissuasão para os que não levam a sério a proibição. Depois que o Exército adotou essa política, em 1980, o abuso de álcool e drogas no meio militar diminuiu consideravelmente, segundo Ronald Rosenheck, diretor de um programa de avaliação de veteranos. "É uma questão de equilibrar o bem-estar do indivíduo com o bem-estar do público", diz Rosenheck.

Em Nova York, nos anos anteriores ao 11 de Setembro, as autoridades não aplicavam rigidamente a política de tolerância zero, adotada pela primeira vez em 1996. Em 1999, por exemplo, nenhum dos 32 bombeiros acusados de usar álcool ou drogas foi demitido. Os bombeiros dizem que a tolerância foi particularmente visível nas semanas depois do 11 de Setembro, quando as autoridades pareciam admitir o preço cobrado pela mortes de 343 membros da corporação.

Mas, quando o número de incidentes envolvendo álcool e drogas começou a crescer, o comissário da corporação, Nicholas Scoppetta, conta que ficou preocupado com a aplicação desigual da disciplina e, em abril de 2002, anunciou que a corporação aplicaria rigidamente a política de tolerância zero. Os críticos acham que a corporação usa a política para se livrar de bombeiros problemáticos, sem considerar se o abuso de drogas pode resultar diretamente de suas experiências no trabalho. "Eles falam essa coisa toda sobre reconstruir a corporação", diz Stephen Cassidy, presidente do sindicato dos bombeiros, "mas a verdade é que estão querendo se livrar dos rapazes."

Nos meses subseqüentes ao 11 de Setembro, o Corpo de Bombeiros fez uma diligência histórica, trazendo centenas de conselheiros e voluntários para trabalhar com sua força desfalcada. A unidade de aconselhamento atende agora 500 bombeiros por mês, ou dez vezes mais do que antes de setembro de 2001. Muitos dos novos casos são bombeiros que admitem problemas com drogas e álcool. Antes do 11 de Setembro, havia cerca de 180 bombeiros com problemas. Só em 2004 a corporação abriu 185 casos e, no mês passado, tratava de um total de 723 bombeiros por uso de drogas.

Rosenheck acha que se o departamento tornasse sua política mais seletiva estaria assumindo a tarefa inviável de distinguir aqueles cujo uso de drogas realmente deriva do trauma do 11 de Setembro dos que poderiam estar usando a tragédia como desculpa.

Se Kelly estivesse entre os que se apresentaram voluntariamente para relatar seu problema, poderia ter garantido o emprego, segundo a política da cidade. Mas essa oportunidade não é aproveitada por alguns bombeiros, segundo conselheiros privados. Eles relatam casos de bombeiros que pagam o próprio tratamento por não confiar no sigilo da corporação.

Kelly diz que não se sentiu confortável em se abrir com os conselheiros que procurou depois de trabalhar no marco zero. Ele diz que não os considera capazes de compreender o que ele está passando. Os restos o assombram, diz, até em casa, onde ele não consegue escapar do que viu.

Durante um turno, por volta das 4 da manhã, depois de encontrar mais pedaços de corpos, Kelly diz que alertou um supervisor. O supervisor lhe fez uma série de perguntas: Nome? Posto? Número de identidade? A informação era usada para etiquetar os restos com a identidade da pessoa que os encontrava, muito possivelmente as únicas marcas de identificação que eles poderiam ter.

Kelly diz que sentia ansiedade e culpa. Ele sobrevivera. Outros próximos a ele haviam morrido, incluindo três velhos amigos. Um colega na limpeza, o bombeiro John Hegeman, diz ter visto a transformação em Kelly durante aquele período, embora não soubesse nada sobre uso de drogas. Ele diz que Kelly era conhecido como "General", um homem sisudo que gritava ordens. Agora, Hegeman recorda, ele pode ser levado ás lágrimas por brincadeiras no posto.

Em 2003, Kelly chocou seus colegas ao trocar a Engine Company 281, seu posto de operação em East Flatbush, por um com menos missões de incêndio nas Rockaways. "Fiquei chocado", diz Hegeman. "Ninguém se transfere de nosso posto, ninguém." Kelly diz simplesmente: "Nunca mais queria ver gente morta... gente morta queimada, morta baleada, caída de um telhado, acidentes de carros, suicídios, bebês mortos, mortos no berço."

Em janeiro, depois que seu teste de drogas deu positivo, ele foi suspenso e recebeu uma função burocrática num cubículo, onde tinha pouco a fazer além de lembrar o que tinha visto. Com cinco filhos para sustentar, ele diz que estava a três anos de completar o prazo para uma aposentadoria integral e vitalícia, e agora está ameaçado de perder tudo.

Ele diz que começou a ver a política de tolerância zero como profundamente injusta e, apesar do estigma de ser visto como um consumidor de drogas, resolveu falar longamente sobre isso. Outros bombeiros em situação similar não quiseram ser entrevistados, por considerarem seu uso de drogas um assunto pessoal. "Fiz o que pude durante 17 anos para o Corpo de Bombeiros", diz Kelly. "Eles não me querem mais, e nessas condições, isso fede." Ao mesmo tempo, ele diz que sabia que não podia culpar totalmente a corporação. "Estou tentando dizer, com toda a humildade que posso, que cometi um erro."