Título: O desafio de melhorar a vida dos que não têm chance de cura
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/09/2005, Vida&, p. A22

Quando quer dizer ´sim´, João Vitor pisca. Para expressar o ´não´, desvia os olhos para a esquerda. Aos 8 anos, acumulando lesões cerebrais, deficiências e paralisias pelo corpo, são os únicos movimentos que lhe restam. Pelas estatísticas médicas, ele é um dos 2.500 nascidos com uma das cerca de 500 doenças metabólicas raras, degenerativas e incuráveis conhecidas pela medicina - uma explicação fria e pouco convincente para seus pais e para os pais de outras crianças como ele que, dispostos a brigar pela qualidade de vida, enfrentam o desconhecimento dos profissionais, a falta de apoio dos serviços públicos e privados, além do próprio preconceito da sociedade.

E nem por isso desistem. 'A única coisa que sobrou do João Vitor é o piscar. E com essa única coisa podemos abrir um mundo para ele', diz sua mãe, a fisioterapeuta Cristiane Spolador Domingos. 'Com essa forma de comunicação que conseguimos desenvolver, ele escolhe o que comer, a música que quer ouvir. Temos de valorizar o que ele consegue fazer e não nos prender no que ele não pode mais', afirma, convicta.

Consciente da ausência de cura e da progressão da doença, ela engrossa o grupo de famílias que pede mais atenção para as síndromes, que podem ser raras, mas somadas não são tão escassas assim - como comparação, estima-se que a síndrome de Down apareça em 1 a cada 800 mil nascimentos.

Um mapeamento do Instituto Canguru, organização não-governamental especializada em doenças metabólicas, já cadastrou 1.949 pacientes com alguma dessas doenças metabólicas degenerativas, a maior parte na região Sudeste, onde ainda há maior capacidade de diagnóstico.

Diariamente, o instituto recebe cerca de 120 ligações de todo o País, feitas por pais em busca de ajuda - dessas, 341 resultaram em ações judiciais para obtenção de exames e remédios, que normalmente não são pagos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nem por alguns planos de saúde privados.

'Não existe censo dessas doenças no País, por isso estamos fazendo o nosso mapeamento, para ter dados que embasem uma proposta de política pública voltada para esses pacientes. O que temos é o teste do pezinho, que pega apenas quatro doenças genéticas, duas delas metabólicas', explica Soraya Araújo, coordenadora-geral do instituto.

Segundo Soraya, nas últimas semanas aumentou a procura pelo instituto, por causa da repercussão provocada pelo caso de J., de 4 anos, internado em estado semivegetativo no interior do Estado e cujo pai ameaçou pedir na Justiça sua eutanásia, recuando dias depois.

O garoto de Franca é portador de uma dessas síndromes, como João Vitor, e como ele está perdendo gradativamente suas capacidades.

Cristiane, como a mãe de J., também teve de correr atrás de um diagnóstico. Quando o garoto começou a apresentar as primeiras manifestações da doença, o pediatra insistiu tratar-se de um problema psicológico.

Por isso, uma das bandeiras defendidas por ela é a informação dos próprios profissionais de saúde. Fundadora de uma ONG, chamada Pela Vida, ela consegue pagar exames para famílias carentes e levanta verbas para iniciar uma pesquisa em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que tem o único centro no País especializado na pesquisa dessas doenças.

'Quero divulgar informação', diz. Assim como o Instituto Canguru, o centro gaúcho tem um telefone para médicos de todos os Estados que queiram orientações sobre as síndromes metabólicas.

QUALIDADE DE VIDA

João Vitor teve o diagnóstico por volta dos três anos e meio, quando começou a dizer que 'não conseguia subir na cama sozinho'. A descoberta veio quando Cristiane o levou a um centro universitário:

leucodistrofia metacromática, uma doença que destrói o sistema nervoso central. 'Pouco tempo depois, ele teve seis convulsões em uma semana, foi internado, entrou em coma e não andou mais', conta.

O mundo caiu, a esperança foi embora e não dava para aceitar que não existia cura. 'Dá para a gente surtar. No começo não aceitava. Queria a cura', conta. 'Foi com o tempo que percebi a importância desse trabalho multidisciplinar, de fisioterapia, de fonoaudiologia, de acompanhamento médico, dos estímulos que damos para ele.

É esse trabalho que pode fazê-lo viver melhor. Se você não pode ter a cura, tem de lidar com o que a criança tem e com o que você pode fazer.' Esse trabalho pela qualidade de vida é justamente o recomendado por médicos e especialistas às famílias.

Hoje, com estímulos, cuidados e medicamentos apenas para evitar as convulsões e infecções, ele está em melhor estado do que muitas crianças com o mesmo problema. Precisa de ventilação mecânica, mas dispensa a sonda gástrica e se alimenta sozinho. 'Vivemos em cima do hoje. Tudo o que a gente quer é proporcionar qualidade de vida para ele.

Além de garantir a assistência médica completa, que tivemos de brigar na Justiça para conseguir que o plano cobrisse, tentamos estímulos, músicas, carinho, percebemos que ele sente', conta a bibliotecária Eliana Pereira dos Santos, mãe de Valdir Júnior. 'É uma felicidade perceber que ele sente prazer quando coloco um brigadeiro na boca dele, apenas para ele sentir o doce. Fico feliz quando vejo que ele sente o sol na pele', conta.

Aos 12 anos, 5 com a doença de Krabbe, diagnosticada há pouco tempo, seu filho perdeu os movimentos, a fala, a visão e precisa de sonda para se alimentar e de aparelho de ventilação para respirar. 'Ele é muito querido e me ensinou a dar valor para o que tem valor. Tudo ganha outra dimensão. Ele passa por tudo isso e sorri, nós é que sofremos.'

EM CASA

Boa parte disso só é possível porque as famílias conseguem manter a criança em casa, pelo sistema de home care, que, além de evitar infecções hospitalares, permite a manutenção dos vínculos com o pai e a mãe, e diminui o stress provocado por uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Na quinta-feira, o secretário estadual de Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata, anunciou que o garoto J., de Franca, receberá emprestados os aparelhos médicos necessários para que ele possa ser tratado em casa, por sua mãe.

'A vida não faz sentido sem vínculos. Uma internação prolongada, afastamento da família, tudo isso aumenta o sofrimento e diminuiu a qualidade de vida que essas crianças podem ter', afirma Fernando Kok, neurologista infantil do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP).

'A luta tem de ser para a sociedade dar condições para essas famílias terem assistência domiciliar e reduzirem a permanência no hospital', defende. É o caso da administradora de empresas Viviane Boveri, que tem o filho Guilherme, de 10 anos, em casa.

'Ele não vê, não ouve, não fala, não se move, não se alimenta sozinho, mas, quando sente dor, faz uma expressão facial diferente, faz bico de choro.

Quando eu o beijo, ele suspira', conta a mãe, ao se referir ao filho, portador de uma adrenoleucodistrofia, doença apresentada no filme Óleo de Lorenzo. 'Quem convive com crianças nessas circunstâncias, baseia a comunicação em outras coisas.

Por isso acho complicado dizer que ele está vegetando. Falam que ele é uma plantinha, mas é uma plantinha que suspira quando ganha carinho', desabafa.

Guilherme passou pela mesma perda gradual que a maioria das crianças portadoras desse tipo de síndrome passa. Um dia, a doença se manifestou - e começou a levar com ela as capacidades do menino. 'Um dia, ele ainda é capaz de te beijar.

No outro, não é mais. No começo, é cadeira de rodas, depois cadeira com apoio, depois perde a deglutição. É um luto por dia. Mas você luta para garantir o melhor para ele, para que ele se sinta amado, receba os cuidados necessários.'

As famílias que experimentam o home care garantem que, além da aproximação com a criança, observam um tempo de vida maior do que o indicado pelos médicos nos diagnósticos. 'Deram 5 anos para o meu filho e ele já está com 9. Em casa, as crianças vivem mais, estão menos suscetíveis a infecções, percebemos que se sentem melhor mesmo, é outro mundo.

Você tem seu filho ali 24 horas com você e sua família', afirma Diego Martins Moraes, pai de Pedro, um garoto que nasceu com uma doença genética ainda sem diagnóstico. 'Quando ele ficava no hospital, percebíamos que ele definhava, que ficava mais apático.

Em casa, seu estado melhora e você consegue unir a família. E cada sorriso, cada mudança, cada sinal que ele dá é uma felicidade', diz a mãe, Tânia Moraes, entre ursos de pelúcia, brinquedos e móbiles, apontando o mural de fotos e as pinturas de figuras infantis nas paredes do quarto de seu filho. 'Quando ele colocou aparelho para ouvir, e ouviu um som pela primeira vez, ele desatou a rir. Descobri que rir é um prazer, mas só ele pode saber disso.'

Mas, como ela mesmo reconhece, os obstáculos são muitos e podem começar dentro de casa mesmo. 'A própria família muitas vezes tem preconceito, não entende, acha que é um fardo, que não vale a pena, não dão apoio', conta.

Por isso, em busca de um apoio, e também de compreensão sem piedade, o casal ajuda a organizar um grupo informal de pais. Fazem parte do grupo pais e mães de crianças com as síndromes, em sistema de home care ou internadas em UTIs.

'Chega uma hora que você começa a contar para outros pais sua situação e você acaba tendo que consolá-los, porque eles ficam com tanta pena de você.

Nós temos uma realidade tão diferente, que é bom termos contato com outras pessoas que passam pelo mesmo que nós', explica Tânia. No grupo, que tenta se reunir duas vezes por mês, os pais sentem que podem falar de igual para igual, trocar informações sobre exames, dificuldades com planos de saúde e até mesmo acolher quem descobriu o problema há pouco tempo.

'Queríamos poder colocar um aviso em cada UTI infantil para poder acolher e ajudar os pais nessa situação', diz. Eliana sintetiza o sentimento: 'Só um pai que tem um filho assim sabe da importância dessas crianças, do que elas nos ensinam e do paradoxo que vivemos: experimentamos a extrema felicidade da doação, da entrega e do amor incondicional, e o medo constante, a angústia e a dor de saber que eles podem morrer a qualquer momento'.