Título: Ilusão diplomática
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Fonte: O Estado de São Paulo, 17/09/2005, Notas e Informações, p. A3

Quase um ano e meio depois da viagem que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez à China, e que deveria ser histórica, pois marcaria o estabelecimento da parceria estratégica entre o gigante da América do Sul e o gigante da Ásia e da economia mundial, o Brasil começa a ver os primeiros resultados do que não passou de uma ofuscante ilusão diplomática. Parceria significa união que rende benefícios para os dois lados. No caso dessa entre Brasil e China imaginada pelos ideólogos da diplomacia brasileira, porém, se ganhos há, eles se concentram em um dos lados tanto no campo diplomático como no comercial e econômico. Não por culpa do lado que mais tem se beneficiado, a China, mas por ingenuidade ou falta de visão do outro, os negociadores brasileiros.

Já antes da viagem de Lula a Pequim, realizada em maio do ano passado, a diplomacia da era Lula mudou a tradicional posição defendida pelo Brasil na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e votou a favor de uma moção nos termos da qual os "assuntos internos" chineses não deveriam ser ali discutidos. Era uma maneira de melhorar o ambiente para a visita do presidente brasileiro a Pequim.

O governo Lula esperava a retribuição chinesa, na forma de apoio a sua pretensão de obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Mas como, além do Brasil, a mudança implicaria abrir espaço no Conselho também para o Japão, cujo domínio sobre parte do território chinês do início da década de 30 até o fim da 2ª Guerra Mundial gerou ressentimentos ainda não superados, o governo de Pequim vetou inteiramente a proposta, sem dar nenhuma explicação aos "parceiros estratégicos" do outro lado do mundo.

Também fazia parte dos objetivos do governo Lula estabelecer, com a China, uma aliança nos principais foros internacionais para enfrentar o que os responsáveis pela política externa brasileira entendem como o domínio dos países industrializados, em particular os Estados Unidos. Mas, pragmáticos, os chineses não querem conflito com os americanos, pois estes são os que mais compram seus produtos.

No terreno comercial, as trocas entre Brasil e China crescem rapidamente. Dos dois lados, as exportações estão em alta. Mas as da China crescem bem mais depressa. Nos sete primeiros meses do ano, as exportações brasileiras para a China aumentaram 4% em relação a igual período do ano passado. Já as exportações da China para cá aumentaram 47%. As importações de produtos eletrônicos e de comunicações originários da China aumentaram 27,5 vezes. Por isso, aumentam as queixas dos empresários brasileiros com a entrada cada vez mais intensa de produtos chineses no mercado doméstico.

Também em outros mercados, o Brasil vai perdendo a disputa com a China. Estudo realizado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e apresentado há dias em São Paulo, durante o 2º Fórum de Economia organizado pela Fundação Getúlio Vargas, mostrou que produtos chineses vêm abocanhando espaços antes ocupados por artigos brasileiros em quatro dos principais mercados: Estados Unidos, União Européia, Japão e região da Ásia-Pacífico. Das importações americanas de calçados, por exemplo, há quatro anos o Brasil respondia por 14% e a China, 47%; hoje, a fatia brasileira está reduzida a 6% e a da China chega a 67%.

Quanto aos grandes planos de parceria anunciados durante a visita de Lula a Pequim - e que, na visão do governo, consolidariam a aliança estratégica -, ainda não saíram do papel. São planos grandiosos e que, se efetivamente executados, sem dúvida reforçariam os laços entre os dois países. Mas continuam sendo apenas isso - planos. Entre eles estão o da construção do gasoduto do Nordeste, a construção de uma refinaria de petróleo no Rio de Janeiro, uma siderúrgica em São Luís e uma refinaria de alumina no Pará.

Ainda este mês, o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, irá a Pequim para negociar medidas de contenção voluntária das exportações chinesas para o Brasil. Que nessas negociações o governo mostre mais realismo, e não se deixe levar, mais uma vez, por ilusões diplomáticas.