Título: 'Ciclo de redução do juro vai longe'
Autor: Fernando Dantas e Suely Caldas
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/09/2005, Economia & Negócios, p. B4

O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga acha que a inflação pode cair mais que o esperado, o que seria um sinal de que o BC foi ortodoxo demais ao buscar a meta ajustada de 5,1% em 2005. Ele argumenta que, ' se a inflação tivesse caído um pouquinho mais devagar, haveria uma combinação melhor de crescimento, juros e inflação'. Se essa tese se mostrar correta, diz ele, 'o BC vai ter espaço para cortar os juros mais do que se imagina'. Para Fraga, hoje à frente da Gávea, empresa de gestão de recursos no Rio, o Brasil vai sair melhor da atual crise política. No início do governo Lula, foi liquidada a ilusão de que havia uma forma indolor de conduzir a política econômica.

Agora, com a onda de corrupção, fica claro que 'querer um Brasil melhor não é monopólio de ninguém'. Ao comentar a agressividade do PT na oposição, inclusive contra ele, chamado de 'especulador internacional', Fraga lembrou o sofrimento que isto causou à sua família. 'O feitiço virou contra o feiticeiro', ironiza. A seguir, a entrevista ao Estado:

Porque a economia está se mostrando blindada contra a crise política?

É uma combinação de fatores. Em primeiro lugar, a boa situação macroeconômica, que já vem de algum tempo. Eu me lembro bem dos momentos em que se falava muito na herança maldita e tudo mais, mas a minha percepção era - e cheguei a dizer isso antes da posse do governo Lula - que eles estavam, do ponto de vista econômico, com a faca e o queijo na mão. Porque houve um ajuste fiscal, um ajuste cambial, um ajuste bancário e a inflação estava apontando para baixo. Depois tem o lado global, uma economia mundial crescendo, um vento a favor que já dura quase três anos. E, finalmente, o próprio bom-senso e a coragem do governo de preservar essa base macroeconômica responsável.

O presidente Lula costuma mencionar que o sr. teria dito a ele, na transição de governo, que entregava o País na UTI.

Eu disse a ele que tudo aquilo que acontecia naquele momento era em função do medo do que viria a partir de 2003. E disse também que acreditava que a situação era administrável, um problema de expectativas, e que cabia aos principais candidatos, especialmente a ele e ao PT, dirimir essas dúvidas. E que, se isso fosse feito e acompanhado depois de gestos concretos, o País recuperaria sua trajetória de crescimento e de desenvolvimento.

Quais serão as conseqüências da atual crise política?

Acho que, no final das contas, vai produzir um Brasil melhor. Isso, obviamente, não é garantido, existem riscos. Mas penso que, dessa confusão toda, vai sair um País mais forte, que avançou mais na direção de ser uma democracia moderna, uma sociedade aberta. Vejo esse caminho indo na direção de um País que vai se livrar de ilusões, mais realista em relação às suas expectativas, mais honesto.

Que ilusões são essas?

Eu volto à campanha de 2002, na qual o governo FernandoHenrique, que teve um final difícil, foi violentamente atacado. Um ataque fulminante, na linha de dizer que estava tudo errado, que era preciso mudar e existiam receitas agradáveis de mudança - bastava vontade e criatividade. Ficou claro que isso não existe. Não existe esse tipo de mágica, por mais que se queira, que se deseje. Todo mundo quer ver um Brasil melhor, isso não é monopólio de ninguém. Acho que esse tipo de ilusão deixou de existir. Outra ilusão é também essa idéia de que um partido, por melhor que seja - e eu acho que o PT tem uma história muito bacana, ninguém tira isso do PT - tem um monopólio da ética, da virtude. Acho que algumas ilusões se foram e isso faz do Brasil um País melhor, mais pé no chão.

A crise paralisou a tramitação de reformas. Qual o impacto disso?

Acredito que o País se vira por um tempo sem esse tipo de trabalho de ataque, de busca de condições para crescer mais rápido, com mais segurança. À medida que o tempo vai passando, dificuldades vão surgir. A resposta do lado da oferta da nossa economia está limitada um pouco pelo medo político neste momento, mas, muito mais que isso, por dificuldades concretas que dizem respeito ao marco regulatório, à infra-estrutura, ao custo de capital, ao crescimento desenfreado da despesa pública, que vem acompanhado de um crescimento da carga tributária, à redução do investimento público. Existem limites no momento, sérios, à nossa capacidade de crescer de forma sustentada.

Quanto o Brasil pode crescer na atual fase?

Ninguém sabe ao certo e qualquer número que eu cite tem que ser encarado com um algum grau de ceticismo. Hoje, do jeito que as coisas estão, não deve ser muito mais que 4%. É preciso investir mais em tudo, em fábrica, em capacidade de produção, em capital humano, em tecnologia. É preciso poupar, investir melhor e reduzir o custo do capital.

Porquea taxa de juro real no Brasil é tão alta?

São vários componentes, que vão desde um histórico muito ruim de hiperinflação, de moratórias, de frouxidão fiscal, etc., até coisas mais recentes. Uma delas diz respeito à essa situação que eu acho transitória de política monetária. Durante um período de desinflação, as taxas de juros ficam temporariamente mais altas. Acredito hoje que o Banco Central está iniciando um ciclo de redução de juros que vai longe. Se tivermos sucesso em navegar nessa crise política e no próximo mandato, seja quem for eleito, se houver continuidade e tomarmos medidas para reduzir esse crescimento incrível do gasto público, tenho confiança que o Brasil vai caminhar para ter uma taxa de juros real de um dígito, caminhar na direção de ter uns 6%, como o Chile teve durante muitos anos. Mas é preciso ter um pouco de paciência e consolidar esse trabalho.

O sr. acha que o Banco Central foi excessivamente ortodoxo durante essa fase recente de desinflação?

Difícil dizer. Eu acho que o ponto que pode ser discutido é se o Banco Central trouxe a inflação para baixo muito depressa e se essa meta de 5,1% para este ano foi perseguida a ferro e fogo. Com a nossa história de hiperinflação, de indexação, não dá para brincar, mas vamos ver. Se essa tese estiver correta - e eu tenho uma certa simpatia por ela -, é provável que a inflação caia mais do que se espera. Se foi exagerado, a inflação vai cair muito. Hoje, eu acho que a inflação vai cair bastante.

Pode ficar abaixo da meta? Nesse caso, seria um erro do BC?

Quanto a ficar abaixo da meta, depende da reação do Banco Central. Se houve algum erro, cabe ao BC, que toma decisões em situação de grande incerteza, retificar o rumo. Isso é o que nós vamos acompanhar agora. Se nós estivermos certos, se a inflação cair bastante, o BC vai ter espaço para cortar mais do que se imagina. Mesmo num ambiente turbulento, desde que essas turbulências não impliquem desvio de rota na política fiscal, questão chave. Enquanto houver disciplina fiscal, acho que vamos navegar nessas águas relativamente bem, com custo limitado.

2006 pode ser como 2002, quando as eleições levaram a uma fortíssima turbulência financeira?

Pode. Se, por acaso, o nosso eleitorado indicar uma preferência por candidatos populistas, com falsas soluções, com mágicas, etc., acredito que pode ser pior.

Já há um candidato populista na praça, o Anthony Garotinho, com um programa econômico feito pelo expresidentedo BNDES Carlos Lessa, que prevê controle de capitais na entrada e nasaída e acabar com o superávit primário. O que aconteceria com o Brasil se um programa desses fosse posto em prática?

Acho que ia ter uma perda de confiança absoluta e iria reduzir a poupança e o investimento a níveis inimaginavelmente baixos. Ia impactar na confiança do consumidor, que ia se retrair também. Iríamos entrar numa profunda recessão, com queda do PIB possivelmente de dois dígitos. Algo assim. Nenhum país está blindado para esse tipo de coisa. É uma blindagem mais da maturidade do povo, que tem que entender em quem vota e no que vota. Mas aí não sou pessimista, não acredito que haja espaço para esse tipo de plataforma no Brasil. Pode ganhar 10% dos votos, pode até ganhar mais, mas não leva as eleições porque não vai chegar aos 50% necessários. Vai ficar ali, num nivelzinho baixo.

O que o sr. acha de uma nova rodada de redução de tarifas de importação, proposta em recente documento do Ministério da Fazenda?

Eu sempre fui a favor, ainda que fosse unilateral. Quando estava no governo, era a favor e era minoria. Fico feliz em ver que isso está andando. Também existia no governo, em épocas pregressas, uma visão de que o Brasil tinha que conservar as suas fichas de negociação. E, portanto, não cabe sair na frente. Eu era internamente acusado de ser ingênuo, com comentários do tipo 'olha só o que os outros países estão fazendo'. Mas acredito que os outros também se prejudicam com esse tipo de política. Porque, quando se está numa situação de proteção a certos setores, acaba-se, em função de distorções, desenvolvendo coisas que talvez você não devesse desenvolver. Cobra-se um preço do consumidor, aquele pequenininho, que não tem voz, porque ele acaba pagando mais por certos produtos. Quando se mede isso, as perdas são significativas.

Como o sr. vê essa onda de escândalos de corrupção envolvendo o PT?

O sr. inclusive foi, no passado, alvo de ataques do PT, chama do de especulador internacional.

Eu encaro isso como parte desse processo de amadurecimento. Machuca as pessoas, eu sofri durante um certo período, minha família também. Alguns casos foram realmente tristes, de perseguição a pessoas, de acusações sem razão. E muito disso aconteceu a partir da ação de uma oposição muito agressiva, aguerrida. E, infelizmente, freqüentemente injusta, embora tenha feito muita coisa boa. Agora o feitiço se voltou contra o feiticeiro. De certa maneira, é até uma ironia e eu não desejo mal a ninguém. Eu acredito que disso tudo saia um País mais maduro, um pouco mais ponderado, mas também intolerante com a corrupção, o desmando e a impressão de que os fins justificam os meios.