Título: A confraria dos tarjas-pretas
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/09/2005, Vida&, p. A31

Marcos Valério Fernandes de Souza e sua mulher, Renilda, enfrentaram horas de depoimentos na CPI dos Correios com a ajuda de comprimidos de Rivotril. Rogério Tadeu Buratti desfiou suas denúncias na CPI dos Bingos amparado por um Lexotan. A publicitária Zilmar Fernandes, sócia de Duda Mendonça, usou meio Frontal para sobreviver à sabatina. Jeany Mary Corner - a chefe das "recepcionistas" - anda sob os efeitos de Frontal e Lexapro. José Carlos Batista, o dono da empresa Guaranhuns, começou a falar na CPI do Mensalão tão tenso que precisou da ajuda de um Rivotril. E Delúbio Soares enfrenta a crise política que ajudou a provocar com o uso eventual de Lexotan. Para quem defende a tese de que tudo o que acontece em Brasília é reflexo da sociedade, o uso corrente de remédios controlados por esses personagens pode até servir de alegoria para a multidão de brasileiros que já admitem sem constrangimentos que precisam de tarjas pretas nas horas difíceis. Ou simplesmente para conseguir levar a vida. O consumo de remédios controlados costuma vir acompanhado de debates sobre até que ponto o ser humano tem o direito de domar as dores da alma empurrando compostos químicos para dentro do organismo. Mas a movimentação nas prateleiras das farmácias mostra que aumenta o número de médicos e pacientes apostando que, sim, a farmacologia deve ser colocada a serviço da calmaria interior. Levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuário de Medicamentos (Idum) e do Conselho Regional de Farmácia do Distrito Federal mostra que os brasileiros consumiram 115 milhões de caixas de medicamentos controlados entre 2003 e 2004. Só entre os tranqüilizantes, o consumo foi de 36 milhões de caixas.

É uma numeralha que comprova aquilo que o olhômetro já mostrava. "Qualquer um faça o teste: pergunte à sua volta quem já tomou, ou toma, tarja preta. Muita gente usa e está certíssima. Bem utilizados e com acompanhamento médico, esses remédios só trazem bem-estar. É preciso tratar do tema sem hipocrisia, porque ele está aí e envolve pessoas que utilizam com responsabilidade", afirma Rubens Pitluk, psiquiatra do Hospital Albert Einstein e criador de um site que responde dúvidas sobre o assunto. (www.mentalhelp.com).

Remédios de tarja preta podem causar efeitos colaterais medonhos. Consumidos em doses exageradas, eles trazem perda de memória, desinteresse sexual, insônia ou reações contrárias às pretendidas. Mas um dos piores problemas é obrigar quem tentava se livrar da depressão, ansiedade ou angústia a conviver com o inferno de um vício. Drogas do gênero podem causar dependência química ou psicológica. Mal administrados, também provocam tolerância às dosagens, um dos caminhos que levam à overdose. "São drogas extremamente perigosas, porque atuam no tecido neural. Daí a importância de ter um especialista por perto", diz o psiquiatra Danilo Baltieri, do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Apesar de todas essas placas apontando para o perigo na estrada, um bom número de pessoas defende que o conforto químico com responsabilidade vale a pena - e se mostra disposto a banir o tom pejorativo que costuma acompanhar o termo "remédio controlado". É uma movimentação suficiente para criar um fenômeno de comportamento.

OS TARJAS E OS BENZAS

Dono de uma corretora de valores da Bolsa de Valores de São Paulo, Fernando Esboriol tem 46 anos, não fuma, não bebe, corre em maratonas e até atua como socorrista, aquela turma que participa de resgates e faz atendimento pré-hospitalar. E se define como "integrante da Confraria do Rivotril". Em 1988, ficou meio cabreiro ao comprar a primeira caixa, prescrita pelo médico para tratar uma síndrome de pânico. Conseguiu se recuperar e ficou anos sem tomar o remédio. Mas hoje toma 0,25 grama - sempre com o consentimento de seu médico - quando a tensão aperta. "Tenho vários amigos aqui na Bolsa de Valores que tomam também. O remédio ajuda a retomar os parâmetros quando tenho um dia muito agitado", diz.

No site orkut.com - a rede de relacionamentos que se transformou em uma amostra virtual dos usos e costumes - milhares de brasileiros se agrupam em comunidades com nomes de tarjas pretas. Em diálogos que mostram o tormento de conviver com a depressão, adolescentes e adultos trocam informações sobre dosagens de remédios, falam sobre períodos de adaptação ou possíveis efeitos. Mas nas conversas também aparece a formação de pequenas confrarias e gírias. "Tarjas" são os consumidores. "Benzas" são os benzodiazepínicos (BZ), o grupo de medicamentos derivados do Valium que está entre os mais prescritos do mundo para tratamento da ansiedade.

"Percebi à minha volta que as pessoas já comentam sem nenhum pudor que usam esses remédios. Tem até várias tribos, formadas pelos que se dão melhor com um remédio do que com outro", diz a editora Isa Pessoa, organizadora e uma das autoras do livro Tarja Preta (Editora Objetiva, R$ 33,90). A obra traz sete contos protagonizados por consumidores assumidos. Alguns de seus autores convivem de perto com a necessidade - regular ou eventual - de ter uma tarja preta em seu raio de visão.

Escritora e roteirista, Adriana Falcão descreve no livro um diálogo hilariante entre uma mulher que se entope de remédios e seu cérebro. "Tem muito de autobiográfico. Há horas na vida em que, sem remédio, não dá", conta ela. Há anos, Adriana vive numa batalha para aplacar a ansiedade. Faz ioga e acupuntura - mas não consegue ficar longe dos antidepressivos e ansiolíticos. "Meu organismo tem uma química complicada, provavelmente é genético." O pai da escritora cometeu suicídio por conta de uma depressão, a mãe morreu de overdose de remédio para dormir. " Se na época em que meu pai se matou essas drogas de hoje existissem, provavelmente ele teria conseguido lidar com a depressão, como eu faço com a ansiedade."

Jornalista e escritor, Pedro Bial imaginou um conto em que o personagem cria o Tarja Preta Futebol Clube, time de botão formado por jogadores com nomes de remédios. E também é tarja-preta assumido. "Quando precisei, tomei antidepressivos, e me foram muito úteis. Hoje, de vez em quando, tomo um Rivotril", afirmou, por e-mail.

ODE E PRECONCEITO

Os medicamentos que regulam humores ou disfunções do comportamento explodiram nos anos 80, com o surgimento de uma segunda geração de drogas. Era o período em que o Lexotan segurava a barra dos estressados, melancólicos e afins. Nas últimas décadas foram se disseminando por todas as classes. Atualmente boa parte dos atendimentos dos postos de saúde trata de doenças psicossomáticas, tratadas no setor público muito mais com remédios do que com terapias. E hoje a droga da moda é o Rivotril. Lançado nos anos 60 para tratamento da epilepsia infantil, ele se revelou eficaz no combate à síndrome do pânico e passou a ser prescrito pelos médicos por fazer efeitos prolongados em dosagens baixas em quem precisa se acalmar.

Consumidores aliviados por certos tipos de medicamentos costumam se derreter em elogios aos seus efeitos. O poeta João Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um poema comparando a aspirina que aliviava suas terríveis dores de cabeça a um sol artificial, imune às leis da meteorologia e que levanta sempre que se precisa dele. Ainda assim, os "tarjas" trazem uma novidade. Não só louvam os efeitos da droga, como reclamam do preconceito contra ela.

"Os remédios que cuidam de estados mentais e/ou emocionais estão cada vez mais evoluídos, praticamente eliminando os antigos, e terríveis, efeitos colaterais. Por que toma-se sem discutir remédios para dor de dente, barriga ou uma gripe e se faz tanto estardalhaço com remédios para nossas pobres cabecinhas tão sobrecarregadas?", argumenta Pedro Bial.

O humorista Chico Anysio se declara tarja-preta há 20 anos. Diz que ficou prostrado em uma cama depois de ter uma crise de depressão detonada por uma frase do escritor Pedro Nava. "Ele disse que a vida de um homem acaba aos 53 anos. E eu estava com essa idade e cheio de filhos. Os remédios salvaram a minha vida." Entusiasta do uso com responsabilidade desses medicamentos, Anysio coloca o preconceito contra quem usa no patamar das ignorâncias humanas. "Faço terapia e gosto muito. Mas, sem os remédios, não dá. Eles são uma conquista de nosso tempo. Se estivesse vivo, Freud teria de rever algumas de suas teorias - e provavelmente tomaria algum também."

Os médicos, no entanto, advertem: os consumidores estão certos em combater o preconceito, mas é preciso ter cuidado com o risco de uso indiscriminado. "Sou médico e prescrevo remédios. Mas é preciso ver que as pessoas viveram até hoje sem tomar e a maioria delas não precisa. Essa diferença tem de ficar bem definida antes que se estimule o uso", diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e membro do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.