Título: País hesita em ratificar tratado antifumo
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/09/2005, Vida&, p. A28

BRASÍLIA - Depois de exercer uma posição de destaque na Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é sério candidato a assumir a outra ponta: a de lanterninha. Acaba em 7 de novembro o prazo para o País apresentar na OMS a ratificação da Convenção-Quadro do Tabaco, um acordo internacional com regras para que países reduzam e previnam o consumo do cigarro. "Vai ser um mico se não conseguirmos", prevê o ministro da Saúde, Saraiva Felipe. Não será fácil cumprir o prazo. O projeto, que teve uma aprovação meteórica na Câmara dos Deputados, hibernou por mais de um ano no Senado - apesar dos apelos feitos por entidades antitabagistas - e ainda está na primeira etapa de apreciação. "Será difícil mudar de uma hora para outra a velocidade. É essa a tática: perder o prazo, em vez de negar a ratificação", afirma Paula Johns, da organização antitabagista Rede Tabaco Zero.

A hesitação de se comprometer a cumprir um tratado cujo texto o País ajudou a preparar reflete o racha existente sobre o tema. O texto enfrenta a oposição expressa de um grupo de fumicultores e velada de setores do governo, que não querem ver um dos principais itens de exportação ter sua força reduzida. Na outra ponta, a da de defesa da convenção, está o Ministério da Saúde e os grupos antitabagistas, que exibem números de quanto o País perde com tratamento de doenças relacionadas ao fumo.

RESSALVAS

A apreciação do projeto está na Comissão de Agricultura. Duas audiências fora de Brasília ainda precisam ser realizadas antes de o relatório ser apresentado. Depois disso, teoricamente, ele teria de passar por mais duas comissões, ir para votação no Plenário e, se aprovado, ser submetido à sanção presidencial. "Corremos contra o tempo. Mas não vamos desistir", afirma a coordenador do programa antitabagista do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Tânia Cavalcanti. Ela observa, no entanto, que a crise do governo dificulta ainda mais a aprovação. "São assuntos distintos, mas, claro, isso agora vem sendo usado como mais uma desculpa", completa.

O relator do projeto para a ratificação, Heráclito Fortes (PFL-PI), comprometeu-se a entregar seu parecer até 7 de outubro. Ele evita dizer qual será sua posição final, mas dá uma boa pista: condicionaria a aprovação do texto à criação de um "período de transição" - a mesma tese do senador gaúcho Paulo Paim (PT). Fortes, no entanto, não tem muito certo o que seria tal transição. Sabe, porém, que não há como aprovar uma convenção internacional com ressalvas. Mesmo assim, ele deverá insistir na estratégia. "O contrário seria como assinar um cheque em branco."

Paim tem discurso semelhante. Eles dizem que a aprovação do projeto colocaria em risco o sustento de mais de 900 mil pequenos agricultores. Fortes observa que a falta de um recado claro do governo também impede sua ação mais precisa. "Ninguém veio até mim dizendo que o governo assina embaixo. Não vou assumir sozinho uma decisão que pode levar ao fim do emprego de agricultores." Tanto Fortes quanto Paim dizem não temer ter seus nomes vinculados à indústria do cigarro. Ou ao lobby tabagista, que até mesmo a diretora da OMS, Vera Luiza da Costa e Silva, não cansa de denunciar.

POLÍTICA DE SUBSTITUIÇÃO

Na semana passada, o ministro Saraiva Felipe pediu ao Conselho Nacional de Saúde reforço para pressionar a ratificação no Senado. Nessa estratégia, vários recursos estão sendo usados. Até um relatório, preparado pelo Inca - ligado ao ministério -, que indica que a associação de produtores de fumo, a Afubra, representa mais a indústria do que os próprios agricultores. Uma ligação que o presidente da associação, Hainsi Gralow, diz ser natural.

Assim como Paim e Fortes, Gralow considera temerária a assinatura da convenção sem uma garantia de que haverá uma política para produtores substituírem suas lavouras. Tania Cavalcanti afirma que o financiamento internacional virá. E ele será tratado justamente na primeira reunião das partes, marcada para o próximo ano, mas que só terão direito a participar países que ratificaram a convenção. "Em tese, poderíamos fazer a ratificação depois. Mas seria uma vergonha diante dos demais países. E perderíamos a oportunidade de defender nossos interesses econômicos", pondera.

Inúmeras vezes, tanto Vera quanto Tânia disseram que, mesmo com a assinatura, a Convenção-Quadro somente traria impacto no consumo de cigarro dentro de algumas décadas. E que, até lá, os países signatários e grandes produtores teriam tempo de mudar suas lavouras.

"China, o maior produtor mundial, assinou há poucos dias. Acabou esse argumento", afirma Paula. Até agora, 83 países já se comprometeram a adotar as recomendações da Convenção-Quadro, incluindo países importadores de fumo brasileiro. Gralow não se abala com a constatação. "Não podemos trocar o certo pelo incerto. Fumicultura é rentável, feita em áreas pequenas. A substituição não será fácil."

À frente do Projeto Esperança-Co-esperança, desenvolvido desde 1987 no município gaúcho de Santa Maria, a irmã Lourdes Dill tem uma visão bem distinta. "Assim como cigarro, a fumicultura causa dependência. E a indústria é a primeira a incentivar a alienação, a baixa qualidade de vida", afirma. O projeto procura incentivar agricultores a deixar o fumo e partir para outra atividade. "Os relatos de sucesso são inúmeros. Não sei por que alguns fumicultores fazem tanta tempestade. É preciso mudar. O ciclo do cigarro uma hora vai acabar. Assim como aconteceu com o café, com a cana."