Título: Revolta das mulheres mexe com Índia
Autor: Raeka Prasad
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/09/2005, Internacional, p. A24

Há um ano, Usha Narayane estava prestes a embarcar numa vida nova. Funcionária de uma central de atendimento com diploma em administração hoteleira, tinha 25 anos e estava pronta para viajar para o norte, saindo de sua casa na região central da Índia para começar a trabalhar num hotel em Punjab. O emprego a transportaria não apenas geograficamente, mas também socialmente. Como seus vizinhos, Narayane é uma dalit, uma 'intocável', da parte mais inferior do sistema de castas. Escolaridade e alfabetização são raras entre as mulheres de Kasturba Nagar, o bairro favelado da cidade de Nagpur onde ela se criou. Ela é solteira. Preferia trabalhar e estudar. Ninguém se opunha ao sucesso dela. Em vez disso, tinham altas esperanças no futuro da garota. Mas Narayane não foi a lugar nenhum. Hoje, está na casa de sua família, que tem apenas um cômodo e não tem janelas. Ali aguarda julgamento por assassinato. Às 15 horas do dia 13 de agosto de 2004, Akku Yadav foi linchado por uma multidão de cerca de 200 mulheres de Kasturba Nagar. Em 15 minutos, levaram à morte o homem que, segundo elas, as estuprou impunemente durante mais de uma década. Atiraram pimenta em pó no rosto dele e o apedrejaram e esfaquearam. Uma delas arrancou o pênis dele com uma faca de cortar legumes. O homem recebeu mais 70 facadas.

O incidente tornou-se ainda mais significativo pelo cenário. Yadav foi morto não nas ruelas escuras da favela, mas sobre o brilhante chão de mármore branco da sede do tribunal de Nagpur. As mulheres tomaram a lei em suas próprias mãos depois que a polícia reagiu com risos e ofensas às denúncias de estupro que elas apresentaram contra Yadav. Chefe de uma gangue local, ele aterrorizou as 300 famílias de Kasturba Nagar por mais de uma década. Invadia as casas e exigia dinheiro, gritando palavrões e fazendo ameaças.

Os moradores contam que ele matou pelo menos menos três pessoas e jogou seus corpos sobre trilhos de trem. Eles denunciaram os crimes à polícia, mas toda vez que Yadav era preso, ele pagava fiança e ficava em liberdade.

Mas era o estupro o que Yadav usava para enfraquecer e humilhar a comunidade. Há vítimas da violência em todas as casas da favela, dizem os moradores de Kasturba Nagar. Ele violava as mulheres para controlar os homens, ordenando que seus capangas arrastassem até meninas de 12 anos para um prédio em ruínas nas proximidades, onde eram estupradas pela gangue.

Na Índia, é um tabu até mesmo admitir ter sido estuprado. Mesmo assim, dezenas das vítimas de Yadav fizeram queixas à polícia. No entanto, o homem de 32 anos nunca foi processado por esse crime. Em vez disso, contam as vítimas, os agentes identificavam para o criminoso as mulheres que o haviam denunciado. E ele ia atrás delas para se vingar. Segundo os moradores, a polícia era aliada de Yadav e o protegia. Em troca, ele subornava os agentes com dinheiro e bebidas alcoólicas.

Quando uma moça de 22anos denunciou Yadav por estupro, a polícia insinuou que ela estava mantendo um romance com ele e a mandou embora. Outras mulheres foram igualmente despachadas com uma frase: 'Você é uma mulher promíscua, foi por isso que ele a estuprou.' Nagpur está entre as cidades indianas que crescem mais rapidamente. Apesar disso, a triste experiência das mulheres de Kasturba Nagar retrata como o dia-a-dia nas regiões mais pobres da Índia está ainda preso ao passado. Exibida nos jornais de todo o país, a imagem ensangüentada de Yadav no chão da sala do tribunal foi uma lição sobre as conseqüências de um Estado incapaz de proteger os fracos e vulneráveis.

Depois do assassinato de Yadav, vozes poderosas se ergueram em apoio ao linchamento. Advogados importantes emitiram uma declaração dizendo que as mulheres não deviam ser tratadas como acusadas, mas como vítimas. Um juiz de Bombaim chegou até a congratular-se com elas. 'Nas circunstâncias em que viviam, acabar com a vida de Yadav foi a alternativa que restou às vítimas dele. Repetidas vezes as mulheres imploraram à polícia por sua segurança, mas não tiveram nenhuma proteção', disse o magistrado Bhau Vahane.

Duas semanas antes do linchamento, Yadav foi à casa de Narayane várias vezes e ameaçou jogar ácido nela e estuprála. Ele a escolheu, segundo ela, porque era instruída e o cunhado dela, um advogado, o havia advertido verbalmente. 'Yadav estuprava só pessoas pobres que ele achava que não iam contar ou, se dissessem, não seriam ouvidas. Mas ele cometeu um grande erro ao me ameaçar. As pessoas acharam que, se eu fosse atacada, nenhuma mulher estaria segura', conta Narayane.

Embora Narayane tenha sido acusada da morte de Yadav, ela afirma que não participou do linchamento. Naquele momento, estava na favela coletando assinaturas para uma queixa em massa contra ele. Entre as acusações feitas contra Narayane estão alguns dos delitos mais graves da Índia - desde crimes contra o país até traição. 'Os policiais dizem que eu planejei o assassinato; que eu comecei tudo. Eles têm de achar um bode expiatório', diz ela. Narayane acredita que foi acusada porque tem sido a crítica mais eloqüente da polícia. 'Minha educação gerou a confiança que inspirou a comunidade a agir', afirma.

Na semana anterior ao linchamento, as pessoas começaram a pensar em adotar uma atitude contra Yadav. Sentindo o clima de ebulição, o bandido desapareceu. Narayane e o cunhado dela evitaram os policiais locais e procuraram o vicecomissário de polícia, pedindo proteção. Ele escondeu a família durante uma noite e prometeu capturar Yadav. No dia 6 de agosto, centenas de moradores da favela derrubaram a casa do bandido. À noite, ouviram dizer que Yadav se rendera e estava preso. 'A polícia disse a ele que corria perigo se voltasse e sugeriu que se rendesse para garantir a própria segurança', destaca Narayane.

No dia seguinte, ele deveria comparecer ao tribunal e 500 moradores foram para lá. Quando Yadav chegou, um dos capangas dele tentou entregarlhe um canivete enrolado num cobertor sob os narizes dos policiais. Depois que as mulheres protestaram, o cúmplice foi preso e Yadav levado em custódia, mas não sem antes ameaçar voltar e dar uma lição a todas as mulheres da favela. Diante de rumores de que ele seria solto mais uma vez mediante o pagamento de fiança, as mulheres decidiram agir. 'Não foi premeditado', assegura Narayane. 'Não sentamos para planejar calmamente o que iria acontecer', acrescenta. 'Foi uma explosão emocional. As mulheres decidiram que, se necessário, iriam para a prisão, mas esse homem nunca mais voltaria para aterrorizálas.' No dia da audiência de Yadav, 200 mulheres foram à corte armadas com facas de cozinha e pimenta em pó. Quando elas entraram, Yadav identificou uma mulher que ele havia estuprado. Yadav a chamou de prostituta e ameaçou repetir o ato de violência contra ela. Os policiais riram. Ela tirou a sandália e começou a bater nele, gritando: 'Não podemos viver nesta terra juntos. É você ou eu.' Foi o estopim que fez a multidão explodir. Logo, ele estava sendo atacado por todos os lados. Facas foram sacadas e os dois agentes responsáveis pela segurança fugiram apavorados. Em 15 minutos, Yadav estava morto no chão do tribunal.

A morte dele não trouxe paz às mulheres. Cinco delas foram presas imediatamente, mas depois de um protesto na cidade acabaram sendo libertadas. Todas as mulheres que vivem na favela assumiram a responsabilidade pelo assassinato. Elas dizem que nenhuma delas pode assumir a culpa sozinha: a polícia terá de prender todas. Mas é Narayane quem está no limbo enquanto espera o julgamento. 'Depois da morte de Yadav, os olhos da sociedade se abriram: as falhas da polícia foram expostas. Isso irritou os policiais. A polícia me vê como um catalisador da exposição e quer cortar o mal pela raiz.' Narayane não se arrepende. 'Não estou com medo. Não estou envergonhada. Fizemos algo bom para a sociedade. Vamos ver de que modo ela nos pagará.'

Tradução de Maria de Lourdes Botelho e Alessandro Giannini