Título: General Heleno, ex-comandante da força de paz da ONU no Haiti
Autor: Eduardo Nunomura
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/09/2005, Inetrnacional, p. A22

De que adianta US$ 1 bilhão em doações de nações ricas para um Haiti miserável se esse dinheiro não chega? Essa questão atormentou a vida do general brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira, só que não foi a única. Nos 15 meses em que esteve à frente da missão de paz da ONU (Minustah) , teve de iniciar suas tarefas com uma tropa em formação. Começou com 1.600 homens, menos da metade do contingente da missão anterior, a Força Multilateral Interina (MIF, sigla em inglês). A Minustah chegou aos 6.200 soldados em dezembro. "As cobranças dos haitianos eram as mesmas. Nem a elite percebeu a diferença entre a MIF e a missão de paz", lembra. Nesta entrevista ao Estado, o general Heleno pede que o mundo tenha tolerância com as eleições gerais de 20 de novembro. Diz que pode haver casos de violência, "dentro do padrão haitiano", mas não se deve julgar o processo segundo "parâmetros suíços ou austríacos". Relata problemas de comunicação (só a tropa do Marrocos falava francês) e a dificuldade de atuar ao lado da despreparada polícia haitiana. Elogia a atuação do embaixador chileno Juan Gabriel Valdés, enviado especial da ONU ao Haiti, e lamenta que os militares tenham sido a parte mais visível da missão. "Eu queria ver o Haiti viver uma nova fase. É um paciente em coma, mas não pode viver nesse estado o tempo todo", diz.

Faltou ajuda internacional ao Haiti?

Havia uma promessa de dinheiro de países doadores que, na minha ingenuidade, achava que fosse vir imediatamente e aí seriam postas em prática ações de infra-estrutura, como o caso da água, da eletricidade, do lixo, das estradas. Com o passar do tempo fui vendo que nada disso acontecia. Segundo o embaixador Valdés, houve um desembolso de US$ 400 milhões. Mas isso não aparece na ponta da linha, naquilo que interessava para mim, como comandante de uma força militar.

E os haitianos cobravam?

O tempo todo. As crianças diziam: "Eu tô com fome, quero comer." Tínhamos uma aproximação bastante boa, mas as pessoas perguntavam o que, além da segurança, íamos fazer. Essa não é uma tarefa militar. Imaginava que fosse haver uma operação conjunta de outras ações também. Os governos sul-americanos têm cobrado isso. A Espanha por duas vezes ameaçou tirar suas tropas.

O Brasil também. Como o sr. reagiu na época?

Isso era um problema político que fugia à minha alçada. Só escutava. Uma vez o embaixador Celso Amorim fez uma declaração nesse sentido e foi muito bom porque mexeu com a comunidade internacional.

Ainda assim a ajuda não veio?

Os doadores exigiam uma segurança impecável para aplicar os recursos. Isso é uma utopia numa população em que 80% não têm emprego e 70% fazem só uma refeição por dia. É uma desculpa para que o dinheiro não chegue.

Por que desculpa?

A situação de miséria e falta de infra-estrutura vale para todo o Haiti. Na questão de segurança, o que vale para Cité Soleil e Bel Air não vale para o resto do país, que está calmo há cinco meses. Claro que poderia haver investimento nas outras áreas. Esta era nossa briga.

Faltou sensibilidade dos doadores?

Se sou doador, sou eu quem autoriza o desembolso. Segurança impecável não existe. Nem no Vaticano. Agora não há mais condições de pensar em mudar essa estratégia. Temos de esperar que as eleições aconteçam, o novo governo tome posse e então se apliquem os recursos.

Que dificuldades tem enfrentado a missão de paz?

Antes a ONU chegava para dissuadir. A presença do capacete-azul era suficiente para que as duas partes parassem o conflito. Os incidentes não envolviam a tropa de paz, que era a turma do deixa disso. No Haiti, isso não tem acontecido, sobretudo em Porto Príncipe. O resto do país, onde fomos ganhando presença, aproximação, está inteiramente calmo. Na capital, há situações de ataques de gangues contra a tropa da ONU. É uma situação nova.

Nova, caótica e violenta...

Pois é. E chegamos à conclusão de que para enfrentar tudo isso precisávamos de um serviço de inteligência. Mas não podíamos ter um porque a organização da missão não permite.

Por quê?

Porque não é previsto. Cada país que se apresenta como voluntário às Nações Unidas envia um quadro de organização sem nenhum elemento de inteligência. Isso não faz parte.

Não é um erro?

Não, mas um conceito que está evoluindo. As últimas têm incluído um nível de utilização de força que não era normal. Se analisar outras missões de paz de que o Brasil participou, os incidentes violentos eram mínimos. E eram incidentes mesmo.

Nas operações no Haiti, os militares chegaram a participar de ações humanitárias. Isso foi muito criticado.

Sim, diziam que estávamos entrando em searas de organizações humanitárias. Mas éramos obrigados a fazer. Ou fazíamos ou ninguém fazia. Os médicos do contingente não foram para atender à população. Se abrisse (exceções), daqui a pouco teria um soldado ferido e o médico estaria atendendo os haitianos. Se perdesse o soldado, como explicaria? Tenho limites. Mas, se o tempo do médico é ocioso, e ele é voluntário, ótimo. Os diagnósticos eram diversificados. Aparecia lepra, leishmaniose, malária, de tudo.

Como foi atuar com a Polícia Nacional Haitiana (PNH), acusada de inepta, corrupta e até de violenta?

A PNH é a única força legal, não tem escolha. Tem problemas seriíssimos de equipamento, material, de carros. Além disso, é uma força que não conta com um apoio ostensivo da população e é acusada de se envolver em eventos ilícitos. Era uma preocupação atuar ao lado da polícia do Haiti.

Porém cabia à Minustah monitorar, reestruturar e reformar a PNH.

A Minustah tem se esforçado. Mas é uma tarefa extremamente difícil por causa do efetivo. Para um país com a situação haitiana, com sorte o efetivo chega a 5 mil. Em Brasília temos mais de 20 mil. Não é fácil elevar o efetivo mantendo o padrão.

Os policiais haitianos são acusados de perseguições e assassinatos.

O embaixador Valdés afirmou que era inaceitável que a PNH fizesse operações sem que a Minustah tomasse conhecimento, evitando que depois acusações de massacres viessem à tona e envolvessem a Minustah como passiva. Mas mesmo nas ações da PNH em que temos conhecimento, durante as operações, é impossível fazer alguma coisa contra ela.

As tropas da Minustah chegaram preparadas ao Haiti?

Não. Chegaram preparadas para uma missão de paz como outras em que participaram no passado. A adaptação levava o tempo do primeiro contingente se adaptar e enviar as informações. O segundo contingente vinha melhor preparado. Os que mais tiveram de se adaptar e estão tendo que aprender são os de Porto Príncipe. A situação ainda é de aprender.

E o fato de não falarem nem mesmo o francês?

Foi um dos grandes desafios. Havia 13 contingentes de 13 países e só um deles era francófono, o de Marrocos. Mesmo essa tropa tinha dificuldades, porque os mais humildes preferem falar o créole. Você imagina fazer um ponto de controle, um checkpoint, com gente do Sri Lanka sem que haja um intérprete ou a polícia haitiana? O diálogo é quase impossível, só uma troca de gestos. É necessário um número enorme de intérpretes, que não está previsto nas Nações Unidas.

E dentro da estrutura militar?

A ligação entre os contingentes ficava bastante dificultada, por mais que se diga o inglês é o idioma de trânsito das tropas. As ligações e briefings eram feitos em inglês. Não são muitos os oficiais fluentes nessa língua. A redação dos documentos não é qualquer um que faz. E não estávamos discutindo futebol, mas decisões onde os detalhes são muito importantes.

Como serão as eleições?

Temos de ser realistas e pensar que podem acontecer problemas. O que não se pode aceitar é que o julgamento sobre a validade, lisura e imparcialidade das eleições seja feito com parâmetros suíços ou austríacos, como diz o embaixador Valdés. Temos que aceitar que dois ou três tiros numa sessão eleitoral, que todo mundo saia correndo e não vote, está dentro do padrão do Haiti. Isso não quer dizer que será fraudulenta. É preciso que a tolerância dos analistas seja a mesma que a de outras eleições em zonas quentes.

Por que o programa de desarmamento fracassou?

Montamos checkpoints no país inteiro, hoje em torno de 20 por dia. A apreensão é muito pequena. Então, dizer que todo haitiano tem uma arma não é verdade. Nas favelas o desarmamento é muito difícil. Em Cité Soleil, as gangues têm apoio da população, porque se impõem pelo terror ou porque as pessoas acham que funcionam como Robin Hood. Então, conseguem esconder as armas e fugir. Nas ações, temos de ser prudentes, porque crianças e mulheres são usadas como escudos.

E a questão dos direitos humanos, criticada pelas ONGs...

O país ainda está engatinhando nessa direção.