Título: Nostalgia e revolta
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

No período da guerra fria, que durou de 1945 a 1991, quando se deu o colapso do socialismo real da União Soviética, o mundo era dividido ideologicamente entre comunismo e democracia. Minha opção foi pela democracia, e não exatamente pelo capitalismo liberal, do laisser-faire, de cujo ventre nasceu a análise marxista, irresistível quando mostrou a enorme injustiça social que era pertinente ao capitalismo, que ele estudou em Manchester, crianças trabalhando 14 horas por dia. Admirador da Doutrina Social da Igreja, em que fui batizado, empolgavam-me as encíclicas, especialmente a Rerum Novarum, de Leão XIII, e a Mater et Magistra, de João XXIII. Leitor de um livrinho altamente didático e convincente, Neocapitalismo, Socialismo, Solidarismo, do padre Fernando Bastos de Ávila, editado pela Agir em 1963, defini-me pelo solidarismo, como alternativa ideológica ao comunismo e ao capitalismo selvagem.

Dei-me conta de que o solidarismo seria a grande resposta alternativa para a concretização do bem comum. Anos depois, concluí que o solidarismo, a despeito de ser uma doutrina excelente, conjugando o homem e a comunidade, para ela não estávamos preparados ainda.

A natureza não faz saltos, dizia Leibnitz. Com o advento do golpe de Estado preventivo de 31 de março de 1964, surgiu a Arena, criada paralelamente ao MDB, pelo presidente Castelo Branco, que extinguiu todos os partidos políticos anteriores ao AI-2, inclusive o PDC, da minha simpatia pela proximidade doutrinária do solidarismo cristão. A Arena foi o meu primeiro partido político.

O presidente Castelo pensou em criar o bipartidarismo, nomeando democrático (MDB) o partido de oposição que ele pretendeu institucionalizar, e reservando para o outro a representação de uma Aliança Renovadora Nacional (Arena). Das doutrinas políticas e sociais existentes, a Arena seguiria o reformismo, eqüidistante entre o conservadorismo da direita e os socialismos das esquerdas mundiais, nem revolucionário nem imobilista.

No governo Castelo Branco vi que a política econômica seguia o neocapitalismo, que se distinguia do capitalismo selvagem pelas conquistas sociais, como a jornada de oito horas, o direito à greve, a proteção ao trabalho da mulher e do menor, os sindicatos e a previdência social. A convite do presidente Castelo, que fora meu comandante quando cursei a Escola de Comando e Estado-Maior, ao deixar o governo do Pará presidi a Arena regional daquele Estado e fui eleito, na convenção nacional, para vogal. O partido, então, era presidido por um dos mais respeitados senadores da República: Daniel Krieger, do Rio Grande do Sul. Secretário-geral, outra figura exponencial, que já vinha de líder da UDN mineira, Rondon Pacheco, um dos políticos, como Daniel Krieger, de quem jamais se fez a menor restrição quanto ao caráter e à hombridade.

Pela Arena, fui candidato ao Senado pela primeira vez em novembro de 1966 e reeleito em 1974. Dos 22 Estados da Federação, nós, os da Arena ¿ que tivera espetacular vitória em 1970, a ponto de o MDB ter cogitado de se dissolver ¿, só vencemos em seis, mas ficamos com apenas cinco, pois Teotônio Vilela, eleito por este partido, nos deixou. Fui o último líder da Arena no Senado e o primeiro do PDS, de cujo programa me encarregou seu presidente, o senador José Sarney. O reformismo era nossa diretriz. Éramos um partido decente, que a oposição respeitava tanto na Câmara como no Senado. Em 1982, o PDS ainda manteve a maioria do Colégio Eleitoral. Foi a causa do cisma que fundou o PFL, por discordar da pretensão de Paulo Maluf de suceder a Figueiredo. O que restou do PDS passou a ser conhecido como ¿o partido do Maluf¿.

Desde, então, o declínio da herança respeitável. O que devia ser herdeiro da Arena e do PDS tem sido um desastre não só político como, sobretudo, ético. Em vez de nomes do mais alto conceito, como os de Krieger e Rondon Pacheco, da origem da Arena, seguiu-se uma série de novas legendas que ultimam com o PP. Sentimos a nostalgia do passado e a revolta do presente. É de mau gosto e impolidez citar nomes, mas os herdeiros da Arena e do PDS têm sido pessoas cujos curricula vitae mais parecem prontuários policiais. Desde o presidente do PP até o deputado Severino, tantos se comprometeram, ora com o dinheiro sujo de Marcos Valério para apoiar o governo Lula, mas não só para isso.

São acusados de ser operadores do mensalão. O líder na Câmara do PDS era Nelson Marchezan, hoje o líder do PP é o sr. Janene, que responde ¿ decerto vítima de caluniadores ¿ a vários processos na Justiça e figura ¿ decerto por inveja de seu talento ¿ na lista da CPI para possível cassação de mandato.

A comparação revigora a nostalgia e mais ainda quando Marchezan, pelo PDS, se elegeu presidente da Câmara dos Deputados. Hoje é Severino Cavalcanti, do PP. Coitado, objeto de extorsão de um insatisfeito dono de restaurante, que deve ter forjado assinaturas de Severino e a ele atribuído ¿ que Padim Ciço perdoe ¿ recebimento de cheque para autorizar a renovação de contrato. Tão malvado é o extorquidor que ainda preparou uma conspiração de garçons do mesmo restaurante a testemunhar o que não viram.

Pobre ¿ repito ¿ Severino e pobre PP, desrespeitado partido, que aumentou a sua bancada, entre o resultado das eleições de 2002 e hoje, devido ao mérito do seu programa político e à integridade moral indiscutível de cada um dos adesistas, tudo sob o pálio protetor do presidente dessa pobre República dos Valérios, Delúbios et caterva.