Título: Briga na Brasil Telecom levanta questão dos fundos estatais
Autor: Sonia Racy
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/09/2005, Economia & Negócios, p. B2

A interminável briga pela Brasil Telecom que culmina com o depoimento amanhã de Daniel Dantas na CPI dos Correios tem uma origem simples: o determinante papel de governos em decisões dos fundos de pensão das estatais brasileiras. A ascendência governamental sobre os fundos é enorme e essa disputa na BrT vem reforçar uma eterna dúvida: até onde os governos devem influenciar as decisões dos fundos? Esse limite é delicado, principalmente porque são os fundos (além do BNDES) uma das poucas fontes de recursos locais que dispõem de capital de longo prazo para investimentos. Portanto, a adesão ou não dos fundos de pensão das estatais a grandes projetos significa, muitas vezes, a criação ou mesmo sobrevivência desses projetos. Vale lembrar que, sem a participação dos fundos, as estatais brasileiras que foram vendidas dentro do programa de privatização do governo FHC teriam sido leiloadas por preços muitíssimo inferiores. Na época, não havia quantidade suficiente de investidores externos ou internos interessados no programa. Os fundos acabaram entrando para que a privatização tivesse sucesso, produzindo ágios enormes engolidos pelo Tesouro Nacional. Quem não se lembra do ministro Sérgio Motta se vangloriando que tinha conseguido vender "ar" quando do processo da privatização das empresas de telecomunicações? Pois é, ele conseguiu isso com ajuda dos fundos de pensão.

Governos brasileiros negam, sistematicamente, sua influência sobre decisões dos fundos de pensão de estatais. O governo Lula não é diferente. Às vezes, no entanto, escorregam. Recente frase do ex-tudo José Dirceu é um exemplo disso. Em conversa informal em Brasília, Dirceu elencou a Vale do Rio Doce como uma empresa estatal. Ao ser questionado, respondeu: "Quem você acha que é dona da Vale? Você já estudou a participação dos fundos na Vale? E quem você acha que manda nos fundos?" O ministro Luiz Gushiken, por sua vez, ignora sua influência em decisões dos fundos. No entanto, é conhecida a sua orientação para que os fundos continuassem na sua briga para tirar Daniel Dantas do controle da Brasil Telecom.

Briga esta que começou durante o segundo mandato do governo FHC. Houve troca de dirigentes dos fundos de pensão que participam da BrT e os novos não concordavam com o acordo assinado pelos antecessores. Este acordo, grosso modo, dava poderes "irrestritos" a Dantas. Como legalmente a batalha era inglória, os fundos apelaram para mídia e para a Telecom Itália que também queria Dantas fora do controle. Também a TI havia assinado acordo com Dantas dando poderes "irrestritos" ao banqueiro. Mas a direção mudou de idéia e resolveu não aceitar o acordo que foi montado por sua executiva Carla Cicco. Aliás, Cicco, logo depois do acordo, mudou de lado: foi despedida da Telecom Itália indo trabalhar com Dantas na Brasil Telecom. E, assim, Dantas continuou à frente da BrT, com apoio do Citibank. Hoje a situação é bem diferente. Os fundos tanto lutaram que conseguiram fazer com que o Citibank mudasse de lado e Dantas fosse destituído. Isso mesmo diante do fato da Telecom Itália que, depois de anos de disputa, mudou para o lado de Dantas se dispondo a comprar sua parte.

Esta é a maior briga comercial da história do Brasil, segundo bem colocou Gushiken no seu depoimento na CPI. E a semente inicial foi o processo de privatização. Mais precisamente, a necessidade de se montar um consórcio diferente para produzir ágio nas vendas das empresas de telecomunicações, já que a maré externa entrava em uma corrente negativa. Na ânsia de vender "ar", o governo inventou o que o ex-BNDES Luiz Carlos Mendonça de Barros batizou de "telegangue", um consórcio cujo capital majoritário era dos fundos de pensão, mas o mando ficava com a iniciativa privada. Esse consórcio acabou comprando a Telemar. Na idéia do governo FHC, a "telegangue" iria somente fazer "figurino". Acontece que deu tudo errado. O grupo inventado por Mendonça de Barros e Ricardo Sérgio, do BB, para decoração da cena, ganhou. E os fundos de pensão acabaram entrando em duas ex-estatais diferentes: a Brasil Telecom e a Telemar. Sem poder de mando em ambas.

Ao que tudo indica, foi Dantas mais a Telefônica a estragarem o desenho sonhado pelo governo. A Telefônica iria comprar o que se chama hoje de Brasil Telecom. A Globopar mais a Telecom Itália ficariam com São Paulo e a Embratel com o Opportunity. Isso não aconteceu. Surpresa: a Telefônica comprou São Paulo e, ágil, Dantas se aliou à Telecom Itália, mais os fundos, e compraram a hoje chamada Brasil Telecom. A "telegangue" entrou sozinha para comprar a Telemar. Inconformado, consta que Mendonça de Barros fez de tudo para não deixar a Telemar nas mãos da "telegangue" e dos fundos de pensão. Tanto fez que a "telegangue" foi obrigada a se financiar no BNDES em 25% do capital da empresa. Havia vários bancos que queriam financiar a "telegangue" mirando o bom negócio: compraram a estatal pagando somente 1% de ágio. A reação da "telegangue" foi forte: a confusão dos grampos que acabou empurrando Mendonça de Barros e outros para fora do governo FHC.

No governo PT, as interferências em processos chamados "privados" continuaram deixando mais claro que nunca que é necessário debater a questão da gestão dos fundos de pensão das estatais, apesar da fiscalização da Secretaria de Previdência Complementar. Na prática, os fundos são privados, mas, por pertencerem a empresas estatais, têm sua gestão administrada pelos dirigentes de estatais que são escolhidos pelos governos que, por sua vez, imprimem suas diretrizes. A atual novela "O Direito de Controlar a Brasil Telecom" deveria acabar de maneira que não mais se repetisse no futuro. Na pauta, como fazer isso.

O governo FHC interferiu na ação dos fundos para alavancar a privatização. O governo Lula, para controlar o Estado. Pode-se dizer que uma interferência foi para o "Bem" e a outra, para o "Mal", tomando por base o processo democrático. Mas ambas as ações são intervencionistas.