Título: Paradoxos da globalização
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

Discutir o sentido da História tem sido, há séculos, uma tarefa de historiadores, filósofos, cientistas sociais, que continuam a indagar se a História tem sentido. A questão do tempo, no entanto, embora indissociável da evolução histórica, tem um significado ainda mais amplo, que envolve pessoas, sociedades e instituições preocupadas com a evolução do universo, com o próprio destino e nos leva a refletir sobre essa nova onda globalizadora que vive a humanidade, produto de uma grande revolução tecnológica que pervaga o mundo trazendo mais perplexidades do que certezas com relação ao século 21. Embora os albores deste milênio se caracterizem pelos flagelos de conflitos localizados e pelo recrudescimento do terrorismo internacional, não se pode deixar de reconhecer que "o sol da liberdade" - de que fala o nosso Hino - brilha "em raios fúlgidos" na maior parte do planeta; e que a liberdade é essencial para a edificação de uma sociedade democrática.

Ao olharmos o mundo 60 anos após a constituição da Organização das Nações Unidas (ONU), podemos constatar que cresceu, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos, o número de Estados integrantes da ONU que vivem sob o regime democrático.

É de notar também que muitas associações interestatais de caráter regional ou sub-regional - União Européia e Mercosul são exemplos - têm concorrido para tal objetivo na medida em que inserem em seus estatutos a pedagógica "cláusula democrática" como pré-requisito para ingresso dos Estados nacionais nas respectivas instituições.

Ademais, as tecnologias da informação estão igualmente contribuindo para o florescimento do intercâmbio entre povos e, como corolário, para a perfusão de valores como liberdade, cidadania e Estado de Direito. Algo, aliás, necessário para a construção de uma nova sociedade internacional sob a égide de uma ONU refundada que, respeitando os valores peculiares de cada povo, assegure a liberdade, a paz, a solidariedade, a justiça, "desenvolvendo a consciência comum de serem, por assim dizer, uma família de nações", como preconizou o papa João Paulo II.

É certo que as instituições políticas, mormente após o adensamento da onda globalizadora, são alvo de crítica generalizada da sociedade contemporânea. As suas práticas são ainda julgadas insuficientes e inoperantes para superar as questões do presente e, sobretudo, para apontar os obstáculos do futuro. Contudo, não é somente a política como atividade que está sob contestação, mas também as instituições econômicas. Se a globalização contribuiu para o avanço do processo democrático no mundo, não há dúvida de que, em contrapartida, sob o ponto de vista econômico, ela ampliou - e muito - não somente a pobreza, mas também a desigualdade social.

Nunca houve tanta prosperidade na economia mundial, embora, paradoxalmente, nunca tenha havido tanta incerteza e insegurança com relação ao futuro da humanidade. A despeito de toda essa prosperidade, a produção econômica cresce na exata medida em que aumenta o desemprego em termos globais. Esse ambiente se repete, em outras dimensões, na escala social, em questões como solidariedade, coesão, proteção de minorias, equilíbrio ecológico, exclusão e correntes migratórias. E isso se dá num momento em que a globalização econômica, as facilidades decorrentes da informação e a troca internacional de experiências, inclusive por meio do turismo, correm em escala jamais vista.

Os conflitos étnicos, os surtos de nacionalismos, os enfrentamentos de caráter religioso e as dissensões internas exibem também o aumento da conflitividade social em larga escala.

A questão da desigualdade e da pobreza é um problema observado em todo o planeta; ocorre, de forma mais aguda, nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, mas também em países desenvolvidos. No recém-divulgado Relatório sobre a Situação Social Mundial 2005: O Problema da Desigualdade, a ONU demonstra, à saciedade, que estes dois fatores - desigualdade e pobreza - continuam impedindo a construção de uma sociedade menos injusta e, portanto, mais solidária.

Por conseguinte, o instante que vivemos é marcado por uma globalização excludente. Diga-se, a propósito, "uma globalização assimétrica", conforme o presidente Fernando Henrique Cardoso já havia ressaltado em seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 1999, no Congresso Nacional. Uma globalização que "comporta riscos graves de exclusão e de aprofundamento das desigualdades, entre os países e dentro de cada um deles".

Fatos tão adversos devem servir de alerta para todos nós no sentido de buscarmos respostas para os desafios políticos, a conquista da racionalidade econômica e, sobretudo, o aumento da solidariedade social. Tudo isso exige determinada resolução de edificar uma nova arquitetura institucional que substitua os organismos da sociedade contemporânea, construídos sob os escombros da 2ª Grande Guerra, sob os quais ainda vivemos, para ajustá-la às esperanças deste novo século.

A reflexão humana nos últimos 50 anos, período caracterizado pelas mais vertiginosas transformações quantitativas e qualitativas de toda a História da humanidade, tem sido invariavelmente marcada mais pelo diagnóstico do que pelo prognóstico. Por essa razão, talvez tenhamos vivido mais sob o signo do conformismo e do pessimismo do que sob a inspiração das grandes utopias que foram capazes de dar ao gênero humano aquele sentimento de grandeza que, em Os Lusíadas, Camões chamou de "o gênio da raça", e tão necessário para entender essa estranha máquina que é o mundo. Ousamos mais no pensamento do que fomos capazes de ousar na ação.