Título: A Coréia do Norte e a bomba
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/09/2005, Notas e Informações, p. A3

A declaração de princípios assinada por seis países, pela qual a Coréia do Norte se compromete a "abandonar todas as suas armas e programas nucleares existentes" e a reintegrar-se ao Acordo de Não Proliferação Nuclear (TNP), aceitando o seu sistema de salvaguardas e inspeções - e em troca receberá petróleo, alimentos, energia elétrica, cooperação econômica, garantias de segurança e um reator nuclear de água leve para gerar eletricidade -, à primeira vista é um notável avanço dos esforços de não proliferação. Afinal, a Coréia do Norte tem em seus arsenais de seis a oito artefatos nucleares, um reator que gera plutônio e um programa clandestino de enriquecimento de urânio - tudo isso para poder construir mais bombas atômicas. E seu regime, uma ditadura comunista hereditária, mantém a população em completo isolamento do mundo. A Coréia do Norte, que com seu grande exército convencional era um fator de desestabilização regional, desde que se tornou uma potência nuclear - ainda que não declarada -, tornou-se uma ameaça global e assim passou a ser tratada pelos EUA. Haveria razões de sobra, portanto, para saudar a decisão do ditador Kim Jong Il de renunciar à capacidade nuclear. Mas a declaração de princípios assinada esta semana em Pequim está redigida em termos vagos e não define a prioridade dos passos a serem dados para que as promessas se tornem realidade. As circunstâncias em que o acordo foi negociado e assinado autorizam pensar que o ditador coreano usará essa oportunidade para se beneficiar com o afrouxamento das pressões que estavam sendo feitas sobre seu regime e adiar, indefinidamente, o cumprimento de sua parte no trato.

O governo de Pyongyang já usou esse expediente. Em 1994, pressionada politicamente e às voltas com uma gravíssima escassez de alimentos e combustíveis, a Coréia acertou com o governo Clinton o congelamento das atividades do complexo nuclear de Yongbyon - que então já havia produzido plutônio suficiente para a construção de pelo menos um artefato nuclear - em troca da manutenção das linhas de suprimento e do fornecimento de dois reatores a água leve, para a produção de energia. Ao mesmo tempo, lançou um programa clandestino de enriquecimento de urânio. Washington levou anos para perceber o engodo.

A Coréia do Norte passa, agora, pelas mesmas dificuldades de uma década atrás. Os poucos recursos de que dispõe o país foram usados para custear uma poderosa máquina militar e a população passa por grandes privações, que só não são maiores porque a Coréia do Sul e o Japão, mas principalmente a China, ajudam com petróleo e alimentos.

A China aproveitou a crise para forçar Kim Jong Il a aceitar as linhas gerais do acordo - mas não conseguiu estabelecer o cronograma e a seqüência das concessões. Os EUA, por sua vez, foram convencidos por Pequim a aceitar os vagos termos da declaração de princípios - era isso ou o abandono da opção diplomática -, admitindo no futuro a normalização das relações diplomáticas com a Coréia do Norte. Mas as gestões chinesas somente deram resultado porque o Departamento de Estado, sob a direção de Condoleezza Rice, havia substituído a política de confrontação que vinha sendo conduzida pelo diretor de não proliferação, John Bolton, agora embaixador na ONU, pela negociação diplomática. Com isso, os EUA, atolados no Iraque e às voltas com o impasse a respeito do programa nuclear do Irã, ficariam livres de uma frente de confrontação com o terceiro membro do "eixo do mal".

Pela declaração de princípios, a Coréia do Norte se compromete a desmantelar suas armas nucleares, interromper o programa de produção de plutônio, a se reintegrar ao TNP e a submeter suas instalações nucleares à inspeção intrusiva da Agência Internacional de Energia Atômica. Essa tarefa não oferece maiores dificuldades técnicas. O teste será a atitude de Kim Jong Il diante de um plano coerente e detalhado de desarmamento. Se as negociações transcorrerem rapidamente, estará provada a boa-fé de Pyongyang. Se as conversações se arrastarem indefinidamente, esse será o sinal de que a Coréia do Norte apenas está tentando ganhar tempo para superar seus problemas imediatos, sem renunciar a seu arsenal nuclear.