Título: Anacrônico coro protecionista
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2005, Economia & Negócios, p. B2

Quando se trata de negociações comerciais como as que estão em curso na Organização Mundial do Comércio (OMC), no âmbito da Rodada de Doha, é estéril concentrar a atenção exclusivamente em Genebra, pois as ações mais importantes têm que ver com o equilíbrio de interesses setoriais em cada país. Proteção só existe porque existem lobbies poderosos que a defendem: o benefício líquido é, em geral, negativo. O status quo na OMC resulta de equilíbrio entre experiências nacionais que envolvem essencialmente o poder de barganha de setores protecionistas. As negociações multilaterais são importantes porque possibilitam a mobilização de interesses difusos e viabilizam a ruptura recíproca destes equilíbrios internos, forçando a redução multilateral da proteção. Numa visão reducionista, o Brasil é protecionista quando se trata de bens industriais, enquanto o mundo é protecionista em relação a produtos agrícolas. O sucesso de negociações comerciais depende da troca de concessões recíprocas, pois já se foi o tempo em que o Brasil podia pegar carona na liberalização negociada entre as economias desenvolvidas. Se o Brasil deseja ampliar significativamente o acesso a mercados de exportação de produtos agrícolas, deve estar preparado para fazer concessões significativas na redução da tarifa brasileira sobre produtos industriais. É claro que, além disso, existe amplo conjunto de temas que poderão ser objeto de troca de concessões: medidas discricionárias de proteção, em particular antidumping, serviços, entre outros. A despeito de lamúrias, na indústria o jogo é esse.

O que ocorreu nas últimas semanas sugere as dificuldades que deverão ser enfrentadas para que prospere política comercial que atenda aos interesses nacionais, e não aos setoriais. Num processo em que seriam discutidas diversas propostas de redução tarifária, foi exatamente a proposta mais liberalizante, a do Ministério da Fazenda, que foi cuidadosamente vazada para a imprensa. Seguiu-se uma saraivada de artigos na imprensa, quase que unânimes na censura ao documento, considerado exageradamente liberal, porque propõe a redução da tarifa máxima brasileira sobre produtos industriais de 35% para 10,5%. Com a notória exceção dos comentários favoráveis do embaixador Graça Lima ¿ desterrado no Consulado Geral de Nova York e impossibilitado de pôr sua reconhecida competência como negociador comercial a serviço do País ¿, formou-se verdadeiro coro protecionista, brandindo argumentos de qualidade duvidosa, com escasso compromisso com alguma coerência intertemporal.

Os argumentos usados para tentar justificar a resistência à liberalização têm que ver, em geral, com as desvantagens estruturais que enfrentariam as empresas brasileiras para competir com importações: juros excessivamente altos, carga tributária escorchante, precariedade dos instrumentos de defesa comercial. Como era de se esperar, não há nesses artigos críticos referência alguma aos custos da proteção. Na secular tradição protecionista brasileira, a presunção é que proteção alta só gera benefícios. Em nenhum momento são citados os fatores que viabilizariam a concorrência por parte de firmas instaladas no País: salários baixos, acesso privilegiado a insumos e recursos naturais. Não interessa se parte significativa do financiamento para investimento é subsidiada, se empresas multinacionais têm acesso ao mercado financeiro internacional. Talvez mais importante é que a maior parte das alegadas desvantagens competitivas decorre de distorções cuja correção depende de decisões que estariam ao alcance do governo brasileiro desde que houvesse o necessário apoio político. A redução da carga tributária e a queda da taxa de juros dependem do corte de gastos, que, por sua vez, depende de reformas que requerem ampla negociação política, incluindo os votos das alas racionais do PT e da oposição. Ou será que há a expectativa de que o mundo espere pacientemente até que o Brasil resolva, afinal, fazer as reformas que melhorem a sua competitividade?

Quase todos os comentários críticos à proposta da Fazenda podem ser rastreados como oriundos da oposição ao governo. É como se estivesse sendo retomada a calamitosa política de reversão ao protecionismo advogada por cardeais do PSDB em 1995 e que resultou na ressurreição de regime de privilégios para o setor automotivo, bem ilustrado pela tarifa efetiva de 270% protegendo a produção de automóveis em 1996. Estão em sintonia com a insistência do pré-candidato José Serra no ¿ativismo estatal¿ e na idéia de retomar o projeto nacional-desenvolvimentista que teria sido abandonado no último quarto de século.

A proposta do Ministério da Fazenda, longe de prestar um ¿serviço extraordinário a nossos adversários¿ (sic), presta um grande serviço ao País, pois, além de atuar como contrapeso à posição inercial de apoio à proteção alta, em muitos casos com perspectivas eleitoreiras, explicita indiretamente as ambições da nossa política comercial quanto à melhoria do acesso aos mercados agrícolas. E não está fora de sintonia, por exemplo, com a proposta do Paquistão, que parece ser encarada com simpatia em Genebra (ver WTO, Negotiating Group on Market Access TN/MA/W/60, 21/7/2005). Além disso, a proposta da Fazenda se destaca por abandonar a posição brasileira tradicional de considerar o protecionismo como política sem custo e defender algo que redundará em benefício líquido para o País. O governo deveria concentrar as suas atenções na definição da magnitude da liberalização agrícola requerida de nossos parceiros comerciais para que o Brasil se empenhe em nova etapa de significativa redução de tarifas incidentes sobre produtos industriais, elemento, aliás, incluído na proposta apresentada na OMC por Argentina, Brasil e Índia (TN/MA/W/54). Para exportar é preciso importar.