Título: Crédito consignado e função bancária
Autor: Raphael de Almeida Magalhães
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2005, Economia & Negócios, p. B2

O BMG, cobrando taxas de juros em empréstimos consignados muito razoáveis para os padrões brasileiros, obteve uma lucratividade expressiva no primeiro semestre. Isso pareceu duplamente ameaçador para o sistema bancário convencional. Primeiro, mostrou que é possível ter lucro com o negócio tradicional de banco, ou seja, fazendo empréstimos ao setor privado sem necessariamente expropriar a clientela. Segundo, que todas as razões normalmente invocadas para justificar os altos spreads bancários no Brasil são falsas. O empréstimo consignado em folha de pagamento a empregados, aposentados e pensionistas foi uma das únicas iniciativas deste governo na área bancária que tiveram efetivamente uma conseqüência social altamente positiva. Pesquisas realizadas pelo BMG indicam que aproximadamente metade dos tomadores usou o dinheiro para escapar da agiotagem informal ou do crédito bancário comum, o qual, pelas altíssimas taxas de juros cobradas, sobretudo no empréstimo pessoal ou no cartão, é outra forma de agiotagem.

É significativo que, no caso dos empréstimos consignados para aposentados e pensionistas, que se revelaram tão compensadores para o BMG, os grandes bancos simplesmente não se interessaram em explorá-los. Inicialmente, a linha foi limitada justamente aos maiores bancos, aqueles que fazem pagamentos para o INSS. Não quiseram. A única explicação para isso é sua aversão à idéia de reduzir o spread do empréstimo pessoal. Eles preferem ganhar muito de poucos a ganhar pouco de muitos.

De fato, o crédito consignado praticamente não tem risco. Por isso pode ser operado de forma quase automática e com custos mínimos para a rede bancária emprestadora. Não exige burocracia nem muito pessoal para atendimento. Não por outra razão a Caixa Econômica Federal, com grande experiência em lidar com pequenos correntistas e poupadores, foi o único dos grandes bancos a entrar forte no negócio. Depois vieram bancos menores, como o BMG, que ocuparam o espaço voluntariamente cedido pelos bancos grandes.

O sucesso do sistema de consignação de crédito não se limita ao principal interessado, que é o empregado ou aposentado. É um sucesso também do ponto de vista da economia como um todo. A metade dos recursos tomados, que não foi para financiar a saída das mãos dos agiotas, alimentou o ciclo de compras de bens de consumo durável, dando uma efetiva contribuição ao desempenho da economia no ano passado e neste ano. Afinal, são aproximadamente R$ 20 bilhões injetados na demanda efetiva, o que é significativo para uma economia com fortes restrições de consumo, queda de renda do trabalho e alto desemprego.

Pelo que se está vendo com o crédito consignado, é possível vislumbrar o que seria da economia brasileira se tivéssemos um sistema bancário normal. Certamente assistiríamos a uma arrancada de desenvolvimento a partir dos estímulos de demanda e de investimento, gerando emprego, gerando mais demanda e ainda mais investimento. Claro, a primeira providência seria reduzir drasticamente a taxa básica de juros para patamares internacionais, e descolar o mercado monetário (over/open) do mercado de títulos públicos convencionais.

É a possibilidade de obter ganhos fantásticos com aplicações monetárias de curto prazo no over e no open que leva os grandes bancos comerciais a praticamente dispensarem o negócio convencional de empréstimo ao setor privado. Em conseqüência, a relação entre o crédito à economia e o produto interno bruto (PIB) se encontra há anos em torno de 25%, o que é, disparado, a menor relação do mundo entre as economias emergentes e desenvolvidas. Assim mesmo se impõem aos tomadores privados spreads sem paralelo no planeta, com a falsa justificação de que o compulsório é elevado ou a inadimplência, alta. O crédito consignado veio deixar patente a falta de fundamento dessas desculpas. Em sua operação não há possibilidade de inadimplência. Os empréstimos ampliam a liquidez do sistema bancário como um todo, tornando irrelevante a desculpa do compulsório. As taxas de juros cobradas são um pouco acima do over, o que justificaria o deslocamento de recursos dos títulos públicos para os empréstimos a empregados e aposentados. Se, a despeito disso, o sistema bancário não quer o crédito consignado, é porque ganha demais e a baixo custo para não ser banco. Prefere ser quase exclusivamente uma espécie de agência de gestão privada, altamente remunerada, da dívida pública.