Título: Apolônio de Carvalho morre aos 93
Autor: Wilson Tosta
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2005, Nacional, p. A16

Fundador do PT e símbolo da esquerda, Apolônio Pinto de Carvalho morreu ontem, às 18h30, aos 93 anos. Ele estava internado desde quarta-feira no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) da clínica Casa de Portugal, no Rio Comprido, zona norte. A causa da morte foi um quadro de insuficiência respiratória, pneumonia e descompensação cardíaca, que se agravou por volta de 17h30 de ontem. Apolônio morreu ao lado da mulher, Renée, e dos filhos. De acordo com o diretor do hospital, dr. Silvio Provenzano, o velho militante manteve a lucidez até seus últimos momentos. O médico disse também que, apesar da profunda tristeza, o clima entre os parentes era de paz e tranqüilidade.

O corpo de Apolônio será cremado amanhã, às 11 horas, no Caju, zona portuária. O velório ocorre na Câmara Municipal, na Cinelândia, centro. Ontem à noite, o ministro Luiz Dulci, secretário-geral da presidência da República, telefonou para a viúva. A assessoria do Palácio Guanabara informou que o governo do Estado não se pronunciaria sobre a morte nem decretaria luto oficial.

Um dos protagonistas da história da esquerda brasileira e veterano de três conflitos armados - a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e a guerrilha urbana brasileira -, Apolônio viveu o século 20 com intensidade ímpar. Militar e comunista, foi preso nos anos 30 pelo governo Vargas no Brasil e lutou contra o franquismo na Espanha. Depois combateu a invasão nazista da França, nos anos 40, e o regime militar brasileiro, nos 60, depois de romper com o PCB. Foi preso e torturado em 1969. Acabou expulso do País com mais 39 presos políticos. Depois da anistia, voltou e ajudou a criar o PT. Morreu acreditando no socialismo, ao qual aderira aos 25 anos.

"A confusão entre desejo e realidade é uma das fontes de erro da esquerda em todas as fases de nossa vida, de nossa trajetória", afirmou, em entrevista à revista Teoria e Debate, editada pelo PT, nos anos 80. Até o fim, defendeu o presidente Lula: dizia que ele foi traído por assessores no episódio do mensalão.

FALA MANSA

Conhecido pelo otimismo, a fala mansa e a polidez, Apolônio nasceu em 1912, em Corumbá (MS), de mãe gaúcha e pai sergipano e militar. Menino, sonhou ser médico, mas, ao partir para o Rio, ouviu um conselho da mãe, na despedida: "Se você for militar, como seu pai, vai poder ajudar a família". Com cinco irmãos, seguiu o conselho materno e, em 1930, ingressou na Escola Militar de Realengo.

Encontrou um ambiente influenciado pelo tenentismo. Formado oficial de Artilharia em 1933, foi servir em Bagé, onde um amigo comunista, o capitão Rolim, o atraiu, em 1935, para a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que reunia democratas, socialistas e comunistas contra os avanços da extrema-direita. Em junho de 1935 a ANL foi declarada ilegal, Apolônio foi preso pela primeira vez e perdeu a patente de tenente.

Foi transferido para o Rio,onde conheceu Graciliano Ramos na Casa de Correção. "Eu conheci a existência do PC na prisão", contaria depois. Lá conheceria também Rodolfo Ghioldi, Olga Benário e Luiz Carlos Prestes. Foi solto em junho de 1937, se inscreveu no PCB e embarcou para a Espanha, onde entrou para as Brigadas Internacionais que combateriam o franquismo. Lá, voltou a ser tenente.

Os republicanos perderam a guerra e foram levados para campos de internamento em território francês, onde, na prática, eram prisioneiros. Em dezembro de 1940, com boa parte do território da França sob ocupação direta dos nazistas, Apolônio fugiu. Foi trabalhar no consulado brasileiro em Marselha, mas logo entrou em contato com a Resistência Francesa.

Foi na Resistência que conheceu a mulher, a então adolescente Renée, de família de comunistas, com quem viveu até o fim da vida. Da França, recebeu a Légion d'Honneur; pela luta na Espanha, recebeu a cidadania espanhola, nos anos 90.

Em dezembro de 1946, voltou ao Brasil e se incorporou a um PCB legal. Chegou a presidir a União da Juventude Comunista (UJC), que tinha como secretário-geral João Saldanha, que depois foi jornalista e técnico da Seleção Brasileira. Com Renée e os filhos foi "caseiro" de dirigentes perseguidos do PCB, entre eles João Amazonas. O casal depois viveu na União Soviética, do fim de 1954 até 1957, para fazer um curso. Estava lá quando ocorreram as denúncias dos crimes de Stalin, mas o próprio Apolônio não se sentiu surpreso nem chocado, segundo diria depois, porque já tinha alguma informação. Viajava com a mulher pela URSS, observava a realidade e conversava com pessoas bem informadas, que lhe contavam de arbitrariedades e distorções do socialismo soviético. Renée, narrou, ajudou-o a superar a visão "ilusória e fantasiosa" que dizia ter do socialismo.

Em mais um retorno ao Brasil, Apolônio passou a escrever na revista do partido, Novos Rumos, e participou da comissão de Educação do PCB, dando cursos de formação. Um de seus alunos foi Marco Aurélio Garcia, atual assessor para Assuntos Internacionais de Lula.

Mesmo crítico do PCB, Apolônio ficou no partido, mas, após o golpe de 64, formou, com Carlos Marighella, Mário Alves e outros antigos dirigentes do partido, a Corrente Revolucionária - integrada, por exemplo, pelo estudante de engenharia Cesar Maia, hoje prefeito do Rio. O grupo rachou: a maioria criou a Ação Libertadora Nacional (ALN) e outra ala, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). A organização política e de guerrilha urbana foi duramente golpeada em 1969, quando Apolônio e outros militantes foram presos.

Alves morreu sob tortura. Apolônio reagiu à prisão. Com quase 60 anos, saltou sobre o motorista do carro que o levava para o quartel, na tentativa de jogar o veículo sobre um muro. Foi contido a coronhadas.

A prisão durou até 1970, quando deixou o Brasil no grupo de 40 presos políticos trocado pelo embaixador alemão, Enrenfied Von Holleben, seqüestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e pela Ação Libertadora Nacional (ALN). Foi para a Argélia e só voltou ao Brasil após a anistia de 1979, após afastar-se do PCBR em 1978, integrando-se ao grupo que formou o PT.

Inicialmente, foi anistiado como tenente da reserva, depois, no fim dos anos 80, foi promovido a coronel e, no governo Lula, ganhou o direito a soldo de general de brigada. Até o fim da vida, manifestou sua paixão pelo PT e por Lula, que conheceu na volta. Mesmo assim, mantinha o espírito crítico.

LULA

Lula divulgou ontem uma nota expressando a "enorme tristeza" com que recebeu a notícia da morte de Apolônio, a quem se referiu como "amigo, companheiro e um dos maiores exemplos de bravura, coragem e coerência". O Planalto não informou quem representará o governo no sepultamento. Na manhã de hoje, Lula estará em Salvador, mas ainda não está completamente descartada a possibilidade de comparecer ao velório.