Título: Campanha federal de doação de órgãos tem novo alvo: médicos
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2005, Vida&, p. A30

A dor é das famílias; e a decisão também. Mas a nova campanha federal de incentivo à doação de órgãos tem um outro público em mente: os profissionais de saúde. São eles os responsáveis por fazer a identificação dos potenciais doadores (vítimas de morte cerebral) e notificar esse fato às centrais de transplante, que então informam as famílias sobre a possibilidade de fazer a doação. Só que isso nem sempre acontece. "Além de conscientizar a população, é preciso sensibilizar também as equipes intra-hospitalares", disse ao Estado o ministro da Saúde, Saraiva Felipe, que esteve ontem em São Paulo para o lançamento da Semana Nacional de Doação de Órgãos. O ministério estima que quase metade (47%) dos casos de morte encefálica não são notificados às centrais de transplante. E da metade que é notificada, menos ainda chegam efetivamente à doação. As razões são muitas: da falta de treinamento médico à falta de infra-estrutura hospitalar para os procedimentos necessários. "Muitas vezes a família quer fazer a doação, mas acaba não tendo essa chance", disse o ministro. Em 2004, mais de 5 mil casos de morte encefálica foram notificados ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Mas apenas 1.400 (27%) pessoas viraram doadoras de fato.

Em São Paulo, Estado que mais realiza transplantes do País, estima-se que apenas 20% dos casos de morte encefálica são notificados. "De cada cinco potenciais doadores, quatro são perdidos", diz o médico Sérgio Mies, chefe da Unidade de Fígado do Hospital Israelita Albert Einstein e um dos pioneiros do transplante no Brasil. Pior ainda: no caso específico do fígado, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde, apenas 20% dos casos notificados são efetivamente transplantados. O que significa, segundo Mies, menos de 5% do universo total de potenciais doadores.

A doação de órgãos caiu 28% este ano no Estado, depois de ter atingido um número recorde em 2004. Foram 648 cirurgias entre janeiro e agosto, ante 901 no mesmo período um ano atrás. A secretaria estadual lançou uma campanha com distribuição de folhetos e adesivos de incentivo à doação, colados em 40 mil veículos oficiais.

Em 25% a 30% dos casos a doação é recusada pela família. Em São Paulo, outros 25% são perdidos por causa da falta de cuidado com a manutenção do corpo após a morte encefálica, o que resulta em parada cardiorrespiratória. Para que os órgãos possam ser aproveitados, o corpo tem de ser mantido respirando e com o coração batendo. "Uma atitude muito comum, especialmente nos hospitais da periferia, é que os médicos preferem 'cuidar dos vivos do que dos mortos'", afirma Mies. "Eles não se dão conta de que, ao cuidar do morto, eles podem salvar a vida de muitos pacientes." Mais de 63 mil pessoas estão à espera de um transplante hoje no Brasil.

Segundo uma portaria assinada ontem pelo ministro, todos os hospitais do País com mais de 80 leitos deverão criar uma Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante. Formadas por pelo menos três profissionais, as comissões serão encarregadas da identificação e notificação de possíveis doadores, assim como do contato com os familiares.

REMUNERAÇÃO

Em Araçatuba, no interior paulista, o gastroenterologista Antônio César Azevedo Pedro aponta a falta de remuneração médica como uma das dificuldades para aumentar o números de doações. Segundo ele, os médicos não têm estímulos e não dão a importância necessária para o trabalho de conscientização das famílias. "Esse trabalho é muito difícil, demanda tempo e não é remunerado, o que desestimula os médicos", disse Pedro, que é chefe da Central de Receptação de Órgãos da cidade. Desde que foi criada, em 2001, a unidade fez apenas quatro captações de órgãos.

Segundo Pedro, somente os médicos que chegam das centrais de transplantes para retirar os órgãos são pagos, ao contrário dos médicos da captação, que trabalham em regime voluntário. "Numa ocasião fiquei dias sem trabalhar em minha clínica para fazer uma captação. Não são todos os médicos que se submetem a isso."