Título: Cardeal revela segredos do conclave
Autor: Gina de Azevedo Marques
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/09/2005, Vida&, p. A34

Detalhes do conclave que elegeu o novo papa, Bento XVI, em abril deste ano, foram divulgados ontem, ainda que, em teoria, tudo o que se passou durante a eleição seja segredo. Após cinco meses da eleição de Joseph Ratzinger, duas publicações italianas divulgaram ontem trechos do diário de um dos 115 cardeais que tiveram direito a voto. Ele aceitou que parte do diário fosse publicada pela revista geopolítica Limes e pelo jornal La Repubblica, desde que mantido o anonimato. O cardeal jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, considerado progressista e a favor das reformas sociais, foi escolhido por um grupo de cardeais como o principal candidato contra o favorito e conservador alemão Joseph Ratzinger. Foi uma surpresa para os vaticanistas que apontavam o cardeal Carlo Maria Martini, também jesuíta, como o grande opositor ao ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que acabou eleito, após quatro escrutínios.

Segundo a revista e o jornal, o autor do diário decidiu divulgá-lo não para provocar um escândalo, mas para contribuir com a historia. A eleição do papa é a votação mais secreta do mundo. Antes de entrar no conclave para a eleição, os cardeais juram manter o silêncio e não revelar o êxito das votações, sob pena de excomunhão.

No diário aparecem informações preciosas, como antecipou o Estado ontem, como o número de votos que os cardeais receberam em cada escrutínio, dando a possibilidade de interpretar as divisões existentes entre os blocos.

Antes das votações, cada um dos 115 eleitores recebeu uma cédula, onde deveriam escrever o nome de seu candidato, e uma lista com os nomes dos cardeais. No fim de cada escrutínio, quando o resultado é pronunciado em voz alta, ambos os papéis deveriam ser queimados na estufa da Capela Sistina. Muitos cardeais memorizaram o resultado e mais tarde anotaram em seus diários.

Entre os nomes citados pelo cardeal não há o de nenhum dos quatro brasileiros que poderiam ter recebido votos e estavam entre os eleitores - d. Cláudio Hummes (São Paulo), d. Eusébio Scheid (Rio), d. Geraldo Majella Agnelo (Salvador) e d. José Freire Falcão (Brasília). Isso não significa que eles não receberam voto. No diário, foi omitido o nome dos que tiveram poucas indicações e o número de votos em branco.

AMBIENTE

Os detalhes divulgados ontem permitem que se cruzem os muros do Vaticano. Logo no início, o cardeal descreve a sensação de entrar em seu quarto na Casa de Santa Marta, o hotel-residência dentro do Vaticano, onde os cardeais ficaram hospedados e isolados no conclave (veja trecho em destaque), e as regras de convivência.

Na Casa de Santa Marta, por exemplo, é proibido fumar. Segundo o autor do diário, o cardeal português José Policarpo da Cruz não agüentou e, numa noite, depois do jantar, saiu para acender seu charuto.

Outro detalhe se refere às negociações que aconteciam dentro dos quartos do hotel depois do jantar. "Eram pequenos grupos de duas ou três pessoas. Não havia grandes reuniões."

Na segunda-feira, 18 de abril, já na primeira rodada de votações, Ratzinger demonstrou seu favoritismo, recebendo 47 votos. Bergoglio ficou em segundo com 10 votos, um a mais que Martini. Em seguida, apareciam o cardeal Camillo Ruini (vigário de Roma) com 6 , Angelo Sodano (secretário de Estado de João Paulo II e Bento XVI) com 4, Oscar Maradiaga (arcebispo de Tegucigalpa, Honduras) com 3 e Dionigi Tettamanzi (arcebispo de Milão), com 2.

Ratzinger manteve a liderança na segunda rodada, na terça-feira de manhã, com 65 votos. Bergoglio obteve 35. Sodano manteve 4 , Tettamanzi continuou com 2. Martini não recebeu votos porque, segundo o autor, teria abdicado de sua candidatura em favor do jesuíta argentino.

Na terceira votação, que ocorreu na mesma manhã, parecia confirmada a divisão em dois blocos: Ratzinger contra Bergoglio. O alemão recebeu 72 votos e o argentino, 40. Segundo o autor, o objetivo da ala progressista era impedir que o ex-prefeito da Congregação pela Doutrina da Fé conquistasse os votos necessários à eleição, ou seja, 77.

Diante da divisão, entraram em campo os "mediadores", que tentavam convencer os demais de que Ratzinger era a melhor opção. Entre eles, estavam dois latino-americanos: o cardeal colombiano Alfonso Lopez Trujillo, rígido adversário da teologia da libertação, e o chileno Jorge Arturo Medina Estevez, prefeito emérito da Congregação pelo Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos. O português José Saraiva Martins (prefeito da Congregação da Causa dos Santos durante o pontificado anterior e o atual), também procurou persuadir eleitores em favor de Ratzinger.

"Na tarde de 19 de abril, tudo se inverteu. Uma rachadura, nada pequena, estava para se abrir no bloco", traz o diário. Jorge Mario Bergoglio recebeu 26 indicações e ficou num distante segundo lugar. Joseph Ratzinger conquistou 84 votos e foi eleito. "Na Capela Sistina houve um momento de silêncio, seguido por um longo e cordial aplauso."