Título: Na cidade sem lei, tudo chega tarde
Autor: Rosa Bastos
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/09/2005, Metrópole, p. C1

Naquele fim de mundo, tudo parece chegar tarde. A fiscalização do Ibama, depois que as árvores de grande porte foram quase todas derrubadas ou viraram carvão. A polícia, depois que a cidade foi destruída. Desde a manhã de segunda-feira, as ruas de Goianésia do Pará, onde quase só se anda a pé, estão ainda mais cheias de pó, com as poderosas picapes da polícia para cima e para baixo. Já foram presas 12 pessoas, acusadas de assalto e dano qualificado, facilitação de fuga, incêndio e formação de bando ou quadrilha. Nenhum dos presos tem antecedentes criminais. Alguns são pais de família. Todo morador é suspeito. Por isso, cada um trata de ter um álibi. 'Trabalho numa loja de pneus. Entro às 7 da noite e saio de manhã, sem bater pestana', conta o vigia João Clarindo Pereira, de 57 anos. 'Só vi o povo correndo.

Passei a noite tremendo e matando muriçoca.' Foi uma noite daquelas. Por todo lado gritos, quebradeira, fogo, explosões. O 'povo' - gente de todo canto, até de Jacundá, a 75 quilômetros - começou a chegar na manhã de sábado para a 'romaria da libertação', caminhada que se repete há 23 anos para lembrar a história de Elizabete e Elineuza, crianças assassinadas por policiais e cujos corpos foram encontrados carbonizados. Para o povo, as duas viraram santas.

Estima-se que 10 mil pessoas participaram da romaria. E cerca de 2 mil continuaram por ali, bebendo por conta. Foi então que chegou a notícia do desaparecimento da menina Thaniff Caroline Learte. Já que a polícia não ia, umas 200 se dispuseram a procurar. 'Dizem que houve distribuição de drogas e bebidas patrocinada com objetivo político', diz o advogado Agnaldo Corrêa, contratado para defender os acusados. 'Não é verdade. Sempre se bebeu depois da romaria.' Segundo ele, as pessoas estavam com os ânimos exaltados por causa da violência recente e pela pregação do padre na romaria. Depois do enterro da secretária Deudinéia Silva e Silva, na segunda-feira passada, já havia ocorrido um protesto em frente da prefeitura e da delegacia. 'Era um termômetro da gravidade da situação, mas não deram bola', diz o eletromecânico Idanilson Porto Medina. 'Um estupro atrás do outro. Parece o Bandido da Luz Vermelha de São Paulo. O povo chegou ao extremo.' Ele mesmo conta ter ido à delegacia avisar que as pessoas estavam revoltadas e mereciam explicações. 'Disseram que eu estava tomando a dor dos outros, para eu cuidar da minha vida porque sabiam fazer o trabalho deles.' A ex-vereadora Arlete Régulo Ferreira viu a movimentação e, preocupada, chamou a polícia. 'Se tivessem vindo logo, não teria ido adiante.' Medina lembra que o quebra-quebra começou à tarde e terminou de madrugada. 'Dava tempo de ter vindo polícia até de Marabá!' Dois filhos de Arlete foram presos. Um já saiu. O outro foi enviado para a Penitenciária de Americano. 'Rasparam a cabeça dele, como se fosse bandido.' Ela nega que a guerra tenha sido política. 'Falam isso para tapar o sol com a peneira e esconder a incompetência.' Quinta- feira, três presos foram libertados. Um deles, José Quaresma Brito, de 48 anos, havido sido arrancado da cama de cuecas, às 6 da manhã de domingo, e não tinha nada a ver com o peixe. Outro, o zagueiro da seleção de futebol de Goianésia, Jancielton dos Santos Ferreira, de 27, nem estava na cidade. 'Aqui acontecem coisas incríveis', diz Euro, irmão dele, orgulhoso do nome 'inédito' que tem. 'Estão pegando qualquer um', diz Corrêa.

Com medo das batidas, muitos estão devolvendo ou deixando no meio da rua objetos tirados dos prédios. 'A maior prova de que a cidade não tem polícia é que botaram fogo até no fórum, queimaram a papelada', diz o vigia Pereira. 'Faz tempo que estão ´estrompando´ mulheres daqui.' José Dias, de 46, diz que Goianésia é uma cidade sem lei. 'Se tinha um roubo e a pessoa ia à delegacia, tinha de pagar para registrar a queixa. Dão mais valor a um bandido que está tomando droga do que a um pai de família.' Ele não poupa os prefeitos. 'Em 12 anos de administração pública não foi feito um metro de asfalto e continuamos sem água e esgoto. A gente só vê eles comprando fazenda, comprando carro, comprando de tudo. E o povo?' O povo se encheu. 'Acontece uma coisa na sua porta, você vai atrás de providências e cadê? Foi cruel o que fizeram com a secretária', diz Raimunda Clemente.

Um dia, pegando um atalho da sua casa para o centro, às 11 horas, com a irmã e a filha de 9 anos pela mão, ela deu de cara com um homem numa bicicleta. 'Ele começou a se masturbar e a dizer indecências. Xinguei ele todo. Esses caras a gente tem de olhar bem para depois ir à polícia denunciar. Mas quem vai olhar para uma imundície dessas?' Raimunda também não aprecia os policiais. 'São arrogantes. Nem gosto de falar. Se tivessem empenho, eu dava um retrato falado do canalha, mas fazem pouco caso dos pobres.' No dia da romaria, a professora Isony de Oliveira Almeida, de 42 anos, preparava aulas no quarto e dava uns cochilos enquanto a neta Thaniff brincava no quintal da casa, num terreno enorme, todo cercado. A menina sumiu e ela pensou em seqüestro, esperou a cobrança de resgate. Nenhum telefonema.

Nos dias que se seguiram, uma angústia sem fim. 'Que política? O pessoal se revoltou com a falta de providências e fez justiça com as próprias mãos.' Sábado, dia 3, Fábio, filho de 20 anos da dona de casa Luzinete Soares e do carpinteiro Antonio Vieira, não saiu de casa. Almoçou cozido de costela de boi, jantou lingüiça frita, viu TV. A mãe, dele e de mais seis, passou o dia lavando roupa. Na hora do jornal, chegaram dois rapazes de motocicleta. Ela só ouviu o tiro. Foi o fim de Fábio. Luzinete mora no bairro Santa Luzia, o mais barra pesada de Goianésia, bem perto da Rua do Amor, que ela detesta. 'Ali rola tudo que não presta. Um lugar pequeno como esse não era para ter boca-de-fumo.' Pois é. Goianésia é pequena, mas tem tráfico de drogas e outros males de cidade grande.

Cinco policiais civis e seis militares formam o efetivo do município. Nestes dias, 30 civis e 80 militares montaram quartel-general na mais bem equipada escola de Goianésia. A prefeitura instalou-se em outra escola. Os alunos estão sem aula.

O coronel da PM Emanuel Gonçalves de Lima, que participou da força-tarefa encarregada de botar ordem na cidade, está convencido de que o quebra-quebra foi ação 'orquestrada'. 'Uma rádio pirata chamou a população para procurar a criança alegando que a polícia não estava fazendo isso. Ora, a polícia estava em diligência, prendendo um rapaz por tentativa de estupro. Pedem para prender o estuprador. A gente prende, vão lá e soltam.' Para ele, o maestro da ação 'orquestrada' perdeu o controle da situação, os vândalos entraram em cena e deu no que deu.