Título: No Pará, uma cidade em pé de guerra
Autor: Rosa Bastos
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/09/2005, Metrópole, p. C1

Na cidade destruída, onde só ficaram as casinhas de madeira dos 29 mil moradores depois que uma multidão em fúria depredou e pôs fogo em 9 prédios públicos e 18 carros oficiais, relatos de estupro viraram conversas triviais. De tanto ouvir falar no assunto, crianças de Goianésia do Pará incorporaram o termo e o pânico ao seu dia-a-dia. 'Vou te estuprar!', grita um moleque de 5 anos para uma menina da mesma idade e sai correndo atrás dela. É uma brincadeira, como outrora a do bicho-papão ou do lobo mau. Ou então: 'Lá vem o estuprador!' Depois do furacão de domingo passado, a pequena cidade, que já tinha pouco, ficou sem ônibus escolar e sem ambulância. 'Acabou, praticamente acabou', lamenta a dona de casa Raimunda Barros Clemente, de 26 anos, duas filhas de 8 e 10 anos, que não perde mais de vista. Na cidade poeirenta do sudeste do Pará, com ruas de barro vermelho, sem esgoto nem água encanada, só restaram escombros e ferros retorcidos da prefeitura, da delegacia, do quartel, das Secretarias de Obras, Educação e Saúde e até de um órgão de assistência a pessoas com deficiência mental. Ficaram todos loucos? Não, chegaram ao limite. Desde o começo do ano, segundo moradores, houve 15 estupros de mulheres, meninas e meninos, além de assassinatos. Quatro casos foram o estopim porque aconteceram um bem perto do outro. Um deles ocorreu no dia 10. Deudinéia Silva e Silva, de 24 anos, secretária da Escola Feliz, uma creche da prefeitura, foi violentada num matagal. Antes, levou um tiro na vagina. Ela se arrastou até a casa de dois cômodos, ajeitadinha, onde morava, descreveu o criminoso e pediu, antes de morrer: 'Procurem por ele. Está todo arranhado e mordido.' Nada. No dia seguinte, três mulheres pescavam na beira do Rio Verde, a 100 metros de casa. Um homem forte saiu de trás de uma moita. Maria Rodrigues Costa, de 56 anos, 8 filhos vivos dos 16 que teve, 5 netos e 5 bisnetos, foi atacada pelas costas, com um pau, tentou se proteger e quebrou o braço. Raimunda Nazaré Alves, de 36, levou três pauladas na cabeça. Lindaura, de 20 e poucos anos, que acabou violentada, saiu da cidade porque não agüentava mais os olhares e as perguntas dos vizinhos. Casos terríveis são narrados com simplicidade por adultos e crianças. Na mesma semana, outra mulher foi seviciada. O homem a deixou sangrando com uma estaca na vagina e a boca cheia de pedras. Sobreviveu, mas não suportou a vergonha.

As histórias são aumentadas, mas não inventadas. Em algumas versões, por exemplo, Maria quebrou os dois braços. E o bandido violentou as três. À procura do endereço de Raimunda, foi dito ao Estado: 'Vá direto naquela rua, até o fim, aí basta perguntar onde mora a mulher que foi estuprada.' Raimunda diz que 'só' apanhou. 'Ora, se ela desmaiou e foi arrastada para o mato, vai saber...', diz um garoto de 17 anos, a idade do filho mais velho de Raimunda que, como o pai, não sai do lado dela. 'Ela se assusta com qualquer barulho no quintal e chora', conta o marido, José Carlos.

Não foram só estupros que provocaram revolta. Em 8 de agosto, Antoniel Silva Santana, de 20 anos, chamado de Caubói porque gostava de se vestir como tal, foi morto por um policial militar às 9 horas, na praça, na frente de todo mundo. Estava com o pai e o irmão mais velho. Tinham ido negociar a compra de uma fazenda. Houve um desentendimento, a polícia foi chamada. 'Sem perguntar nada, mandaram a gente deitar no chão. Um deles empurrou meu pai. Meu irmão, que estava algemado, quis defendê-lo', diz Raimundo, de 26 anos. Caubói levou um tiro de fuzil na barriga. 'Ele não tinha nem barba direito', lamenta a mãe, Elvanir.

O desaparecimento de Thaniff Caroline Learte, de 5 anos, uma semana depois da morte da secretária, foi a gota d´água. Duas primas contaram que ela foi levada por um 'tio preto' quando brincava no quintal. Em pânico, a mãe, Cristina, foi à delegacia. Soube que uma pessoa só é considerada desaparecida depois de 24 horas. 'Mas é uma criança', alegou. Os moradores se juntaram para procurar a menina. Sem sucesso - um corpo que se acredita ser de Thaniff foi achado anteontem - e com muita raiva, queimaram a delegacia.

Depois os ônibus escolares, a casa do prefeito. 'Tá igual ao Iraque', comparou Jonas Alves de Lima, de 69 anos. 'É o fim dos tempos.'