Título: Cacoetes tributários
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/09/2005, Notas e Informações, p. A3

Por cacoete profissional autoridades tributárias invariavelmente se opõem aos reclamos dos contribuintes por redução dos tributos. O alívio para os contribuintes, alegam sempre os responsáveis pela arrecadação tributária, leva à redução da receita, o que resulta em problemas para a política fiscal, cuja meta é a redução do déficit público. Mas o documento em que a Receita Federal do Brasil analisa a arrecadação deste ano mostra que o tratamento mais justo do contribuinte, com medidas como a correção da Tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), não resulta necessariamente em redução da receita. Muitos fatores influem no comportamento da receita, de modo que o resultado final de uma redução de impostos pode ser benéfico para os dois lados, aquele que os paga e aquele que os arrecada.

Nos oito primeiros meses de 2005, apesar do alívio concedido aos contribuintes, a arrecadação do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre os rendimentos do trabalho alcançou R$ 22,295 bilhões, 7,45% a mais do que se arrecadou de janeiro a agosto de 2004, descontada a inflação. É um aumento real bem maior do que o projetado para o crescimento da economia neste ano, de cerca de 3,5%.

No entanto tem prevalecido o argumento segundo o qual cada centavo a menos na arrecadação de determinado tributo terá de ser compensado por aumento na de outro, ou por corte correspondente da despesa, para evitar o crescimento do déficit público. É dele que se valem as autoridades tributárias para repelir propostas que beneficiem os contribuintes. Mas o que os números do IRRF mostram é que nem sempre o alívio tributário resulta na queda da arrecadação. Pode até ocorrer o contrário.

No ano passado, o governo resistiu como pôde às pressões de sindicalistas, parlamentares e dirigentes empresariais, que exigiam a correção da Tabela do IRPF, pois sua manutenção resultava no aumento da carga tributária. A Receita Federal alegava espertamente que a correção era uma forma de indexação, o que contraria as regras do Plano Real. A própria Receita, porém, além de impor multas aos contribuintes em atraso, corrige integralmente o valor devido.

O governo acabou cedendo, pois não apenas as razões alegadas pelos contribuintes eram justas, como as pressões sociais e políticas se tornaram fortes demais. Aceitou a correção. Mas o fez de maneira parcial, corrigindo a Tabela do IRPF por um índice menor do que o correto, e ardilosamente introduziu no mesmo texto legal, a Medida Provisória 232, o aumento da carga tributária das empresas prestadoras de serviços, produtores rurais e outros contribuintes.

A resistência a mais essa esperteza mobilizou diferentes segmentos da sociedade e, outra vez pressionado, o governo concordou em limitar o alcance do texto legal à correção da Tabela do IRPF. O que acabou sendo aprovado pelo Congresso foi um texto ambíguo em pelo menos um ponto: o da vigência da alíquota máxima de 27,5%. A Lei nº 10.828, de 23 de dezembro de 2003, diz explicitamente que essa alíquota vigorará até 31 de dezembro de 2005. Já a Lei nº 11.119, de 25 de maio de 2005, que resultou do projeto de conversão da MP 232, mantém essa alíquota, mas não fixa prazo de vigência nem revoga o que dispõe a lei anterior.

Essa ambigüidade, não percebida inteiramente na época da aprovação da Lei nº 11.119, acabou vindo à tona quando o governo enviou ao Congresso a proposta de Orçamento da União para 2006, na qual se previa a redução da alíquota máxima para 25%. Para dirigentes da Receita Federal, foi um engano dos redatores da proposta, pois o que prevalece é o que determina a lei mais recente. Mas esse entendimento não é unânime, nem mesmo entre técnicos do governo. Os que discordam dele alegam que, como a nova lei não revogou explicitamente as regras antigas, estas continuam em vigor.

Tendo desenvolvido ao longo do tempo tanta insensibilidade à situação do contribuinte, a Receita não se convence com argumentos técnicos como esses nem se impressiona com o desempenho da arrecadação tributária, sempre tão favorável ao governo. Considera o crescimento da receita apenas uma decorrência natural de seu trabalho, não um ônus adicional sobre a sociedade.