Título: O referendo popular sobre desarmamento
Autor: Dom Cláudio Hummes
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

"O porte e o uso indiscriminado de armas de fogo transformam, muitas vezes, conflitos banais em tragédias. Conforme dados disponíveis, em um ano (2002), foram mortas 38.000 pessoas, em média 104 por dia. A cada 14 minutos é ceifada uma vida. O Brasil é o país com o maior índice de assassinatos por armas de fogo." São palavras da CNBB, em assembléia-geral de agosto passado, na sua nota Diga Sim à Vida, a respeito do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munição. O referendo popular se aproxima. A Igreja Católica, por intermédio de seus bispos, se pronunciou em favor do desarmamento. Concordamos, sim, que seja proibido por lei federal o comércio de armas de fogo e munição. Julgamos que tal medida ajudará a construir a paz social e familiar. "Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus", disse Jesus (Mt 5,9). É preciso desarmar a mente, o coração e as mãos.

Peço licença para apresentar, em seguida, alguns dados, extraídos da cartilha A solidariedade é nossa maior defesa. SIM à proibição do comércio de armas. Mobilização pela Vida contra a violência, de responsabilidade de um conjunto de entidades que se empenham pela construção da paz, entre elas Cáritas Brasileira, Comissão Brasileira de Justiça e Paz/CNBB, Cese, Cebi, Conic, Educadores para a Paz, Serpaz, Trilha Cidadã e outras.

Desde meados do ano passado está em curso a Campanha do Desarmamento, que visa a recolher armas que as pessoas mantêm em suas casas. Foi bem recebida pela população, em geral. Inicialmente, previu-se que a campanha duraria seis meses e se esperava recolher 80 mil armas até 23 de dezembro de 2004. Mas todas as expectativas foram superadas. Na verdade, naquele período foram arrecadadas quase 250 mil armas. Então, a campanha foi estendida até junho de 2005, e nesse período foram recolhidas mais 100 mil armas. O prazo foi novamente ampliado até dia 23 de outubro, dia do referendo. Já se recolheram, no total, mais de 400 mil armas.

O Brasil, infelizmente, é o recordista em número de homicídios por armas de fogo no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas. As maiores vítimas são os jovens, as mulheres e as crianças. Os jovens estão em primeiro lugar. Enquanto a taxa de mortalidade por arma de fogo entre homens de 30 a 39 anos é de 57,7 por 100 mil habitantes, entre homens de 20 a 29 anos esta taxa praticamente dobra para 103,1 por 100 mil habitantes.

Por sua vez, as mulheres também estão entre as principais vítimas de armas de fogo. Haver uma arma de fogo em casa aumenta em quase três vezes o risco de uma mulher ser assassinada. A violência doméstica, associada à presença de armas de fogo, amplia muito os danos dos conflitos intrafamiliares, o que inclui, obviamente, também lesões por arma de fogo em crianças.

No portal de Internet da Prefeitura de São Paulo, na secção cmdh, são listados cem motivos para o cidadão desistir de ter armas de fogo. Cito alguns mais contundentes. Todo dia, cem pessoas morrem, no Brasil, vítimas de arma de fogo. Arma de fogo mata mais que acidente de trânsito. 67% das mortes (violentas) de homens entre 15 e 34 anos são causadas por arma de fogo. A arma de fogo é a primeira causa de morte (violenta) de homens jovens no Brasil. O homem que se arma tem a ilusão de que está protegido. Isso acontece só no cinema. Na vida real, o bandido tem a iniciativa do assalto e vai escolher o momento em que você está distraído. Se você tentar pegar sua arma, provavelmente vai morrer. Cada dez vezes que um cidadão de bem saca uma arma, em nove o bandido leva vantagem. Uma pessoa com arma em casa tem 57% mais possibilidades de ser assassinada do que quem está desarmado. Qualquer um pode perder a cabeça e, com uma arma ao alcance da mão, se transformar num assassino. Em São Paulo, quase 60% dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis. A cada ano, só no Estado de São Paulo, 11 mil armas legais são roubadas ou furtadas e passam para as mãos dos criminosos. Crianças sentem grande atração por armas. No Brasil, os acidentes são a principal causa de internação de crianças com lesões por arma de fogo.

Vê-se que arma de fogo não é proteção em casa ou no carro. Ao contrário, gera violência e morte.

Jesus, na véspera de sua morte, ao ser preso, no Horto das Oliveiras, viu o apóstolo Pedro puxar da espada para defendê-lo. Mas Cristo não aprovou o gesto e disse a Pedro: "Guarda a espada na bainha! Pois todos os que usam da espada pela espada morrerão" (Mt 26,52). Nosso povo tem um ditado semelhante, que diz: "Quem com ferro fere com ferro será ferido." Só a não-violência do agredido freia a violência do agressor. Jesus chegou a dizer, no Sermão da Montanha: "Ouvistes o que foi dito aos antigos: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que te fere na face direita, oferece-lhe também a esquerda" (Mt 5,38-40).

Urge construir uma cultura de paz. A nova lei de proibição do comércio de armas de fogo e munição, que vamos referendar dia 23 de outubro, poderá contribuir muito para esta construção. Outras iniciativas serão necessárias, certamente. A educação das crianças e dos jovens na família e nas escolas deve integrar esta preocupação na formação integral das novas gerações. Os formadores da opinião pública, como os meios de comunicação social e as igrejas, também, de modo geral, as organizações da sociedade civil deverão dar sua contribuição responsável.