Título: Projeto do aborto chega à Câmara
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/09/2005, Vida&, p. A19

Depois de enfrentar resistências por mais de um mês, a ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Nilcéa Freire, conseguiu o aval para apresentar na Comissão de Seguridade da Câmara a proposta para descriminar o aborto. A presença da ministra foi confirmada minutos antes do início da solenidade, logo depois de uma reunião que teve com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva justamente para discutir o assunto. Nilcéa se atrasou, mas sua chegada teve gosto de vitória para as feministas. Ela entrou pela porta junto da platéia, foi aplaudida e cantou o Hino Nacional. Até o início da tarde, poucos imaginavam esse desfecho. As avaliações eram as de que a entrega da proposta da descriminação do aborto seria feita por integrantes da comissão tripartite criada pelo próprio governo para discutir a revisão da lei, o que reduziria os holofotes sobre a discussão.

Integrada por 18 pessoas que representavam a sociedade civil, o Executivo e o Legislativo, a comissão reuniu-se entre abril e agosto. Por maioria, propôs a liberação do aborto até a 12ª semana de gestação. Para casos em que a gravidez é fruto de violência, o prazo é de 20 semanas. Pela proposta, a gestante poderá fazer a interrupção da gravidez em serviços públicos ou, se tiver plano de saúde, num hospital conveniado, sem necessidade de carência.

A reviravolta foi desenhada ontem mesmo. Na semana passada, cansados de esperar uma confirmação do governo, integrantes de movimentos sociais decidiram tomar a liderança e apresentar, por conta própria, o projeto no Congresso. O grupo não escondia indignação com o governo, que paralisara o andamento da proposta. Uma atitude que eles atribuíram à pressão da Igreja e à crise política.

Gilberta Soares, da Jornadas pelo Aborto Seguro, movimento que reúne mais de 40 ONGs, avaliava que o governo não queria dispensar um importante aliado neste período de crise, a Igreja. E citava uma carta, enviada pelo presidente Lula à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em agosto, em que ele se comprometia em lutar pela vida.

Na reunião de ontem, a ministra tentou convencer o presidente de que a entrega do parecer na Câmara representaria apenas o desfecho de um processo iniciado durante uma conferência feminista, em que foi decidido que o País precisava rever a legislação, não parecendo um projeto de governo. Em seu discurso, ela procurou enfatizar que a posição da tripartite não havia sido unânime, mas da maioria de seus integrantes. E que o consenso era de vários setores da sociedade, incluindo o Legislativo.

Ao fim da cerimônia, Nicéa não quis esclarecer se o governo apoiaria a aprovação do projeto - posição bem distinta da que ela adotou em agosto, quando a comissão havia concluído os trabalhos. Maria Laura Pinheiro, coordenadora da comissão e integrante da secretaria, também foi evasiva. "Se formos chamados pela comissão, viremos. Mas nossa participação será restrita a isso."

Para feministas a entrega do projeto pela ministra já basta. "Não há dúvida de que com isso a discussão chega a um outro patamar", avalia Lia Zanotta, integrante da comissão.

"Vou levar o projeto para votação", afirmou o presidente da Comissão de Seguridade, deputado Benedito Dias (PP-AP). "Podem ficar tranqüilas. O projeto não ficará no fundo da gaveta", completou. A proposta da comissão será incorporada ao substitutivo que tem a deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ) como relatora. Jandira, que há mais de oito anos luta pela liberação do aborto, sabe das dificuldades que terá de enfrentar. "As resistências são inúmeras. No Congresso, isso vale não só para aborto, mas também para planejamento familiar", observa. "Não sei a que vida tal grupo tenta preservar. O aborto hoje representa a 4ª causa de morte de mulheres no País."

A deputada deve agora mapear qual a receptividade do projeto na própria Comissão de Seguridade. Entre os opositores à liberação do aborto está a deputada Angela Guadagnin (PT-SP), que também integrou a comissão tripartite. Em seu discurso, Jandira citou chantagens e medo de assumir algumas posições polêmicas.

O secretário geral da CNBB, d. Odilo Scherer, não escondeu sua decepção. "Esperávamos que isso não fosse acontecer, que o Executivo refletisse e não apresentasse a proposta." O secretário afirmou esperar, agora, que o Congresso reformule profundamente o projeto. "E que não se legisle contra a vida de nenhum ser humano, sobretudo seres inocentes, que ainda não nasceram."