Título: Em 25% dos casos, é a família que rejeita a doação de órgãos
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/09/2005, Vida&, p. A16

Campanhas e debates hoje, Dia do Doador, defendem que escolha seja feita longe de pressões emocionais

O assunto não é dos mais agradáveis. Nem para se ler no jornal, muito menos para se discutir com a família na mesa de jantar. Mas trata-se de uma questão de vida e morte. Todos os dias, em hospitais públicos e privados do País, famílias em luto pela perda de um parente se vêem diante da decisão de fazer ou não uma doação de órgãos. A esperança dos médicos - e das mais de 60 mil pessoas que esperam por um transplante no Brasil - é que essa decisão não tenha que ser tomada ali, diante da sala de emergência ou de um quarto de UTI. A orientação é que ela seja discutida antecipadamente, longe das pressões emocionais do ambiente hospitalar. Hoje, entre as causas para a não realização da doação está a negativa familiar, em 25% dos casos.

A decisão antecipada é a principal mensagem de várias campanhas e debates que deverão marcar, hoje, o Dia Nacional do Doador de Órgãos. "A conversa sobre doação deve ocorrer num momento de tranqüilidade, e não no momento em que se está sofrendo a perda de um ente querido", diz o coordenador da Organização de Procura de Órgãos do Hospital das Clínicas e vice-diretor clínico do Hospital Israelita Albert Einstein, Milton Glezer. "Isso tira um peso enorme dos familiares."

Aqueles que desejam ser doadores de órgãos, segundo os médicos, devem comunicar claramente esse desejo aos seus familiares. Pela legislação brasileira, não é preciso deixar nenhuma documentação por escrito. A decisão, no final, cabe inteiramente à família.

"Você está sofrendo, mas tem de parar um pouco e pensar também no sofrimento dos outros que estão à espera de um órgão para sobreviver", diz a professora Maria do Socorro Alves, de 39 anos. Ela se deparou com essa situação em março do ano passado, depois que um de seus filhos morreu atropelado por um ônibus a caminho da locadora de DVD. O motorista estava embriagado e passou o farol vermelho. O garoto, de 12 anos, morreu no pronto-socorro do Hospital São Luiz, no Morumbi.

Maria decidiu doar todos os órgãos do filho. Quinze dias depois, recebeu uma carta dizendo que eles haviam beneficiado sete pessoas. "Sempre tive vontade de ser doadora e sempre conversei sobre isso com minha família", conta a professora. "Não é fácil; a dor é muito grande. Mas se não tem mais jeito, por que não fazer com que outras pessoas sobrevivam? Acho que é uma maneira de ajudar outras famílias para que elas não tenham de passar pelo mesmo sofrimento que nós passamos."

A publicitária Daniela Matteoni, de 34 anos, reza todos os dias pela família da menina de 14 anos que lhe doou o rim e o pâncreas. Diabética desde criança, ela perdeu a função renal aos 27 anos. Tomava três injeções de insulina por dia e chegou a ficar temporariamente cega. Passou seis meses sem andar e, há três anos e meio, dependia de uma máquina de hemodiálise para sobreviver. Depois do transplante, ficou totalmente curada. "Eu nasci de novo; não há outra maneira de colocar isso", conta.

Hoje, Daniela trabalha como voluntária na Associação de Pacientes Transplantados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dando apoio a pacientes recém-transplantados e que estão na fila de órgãos. "Quando você doa um órgão, é uma vida que você está dando. Não tem nem como agradecer."