Título: No mistifório do São Francisco
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

Se faltasse alguma coisa para tornar ainda mais grave o mistifório em que se transformou o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco para o Nordeste setentrional, não falta mais. Desde o começo desta semana, como noticiou este jornal (27/9), o bispo de Barra (BA), frei Luiz Flávio Cappio, declarou-se em greve de fome - "até a morte" - contra a aprovação de outorga ao projeto pela Agência Nacional de Águas (ANA) e o anunciado início das obras. E só a suspenderá se um documento assinado pelo presidente da República se comprometer a mudar os rumos. O bispo, que já tem apoio da Comissão Pastoral da Terra, entende que o projeto não atende às necessidades das populações mais pobres do Nordeste. Seu gesto já está sendo comparado aos de Chico Mendes e da freira Dorothy Stang. A Agência Nacional de Águas esta semana concedeu direito de outorga por 20 anos ao Ministério da Integração Nacional, para executar o projeto de transposição para bacias do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Poderão ser bombeados 26,4 metros cúbicos por segundo continuamente, que poderão chegar a 114,3 m3, dependendo da vazão do rio em Sobradinho.

Surpreende a decisão da ANA, já que o Ibama fizera 31 exigências ao Ministério da Integração ao conceder licença prévia ao projeto. E até hoje não foi respondida a maior parte dos questionamentos que têm sido levantados por numerosos especialistas nessa área: a desnecessidade da transposição (há água suficiente nas regiões que a receberão); o projeto não beneficia as comunidades isoladas, que são as vítimas da seca; a maior parte da água se destina à irrigação em grandes projetos, não às populações mais necessitadas; atender a essas populações custaria algumas vezes menos que transpor; grande parte dos solos a serem beneficiados pela irrigação é inadequada ou sujeita a erosão; a maior parte da água irá para açudes onde o nível de evaporação e perda é muito alto; a água transposta será muito cara. E várias outras.

Ainda assim, o diretor de Licenciamento do Ibama já anunciou que em dez dias será autorizado o início das obras (que depende de licença de instalação). Antecipa-se, portanto, a uma decisão do órgão - seguindo o exemplo da própria ministra do Meio Ambiente, que antes mesmo da licença prévia já anunciava seu apoio a um projeto que não fora autorizado pelo órgão a ela subordinado (onde ficou a autonomia técnica deste?). Anuncia-se também que logo após a nova licença o Exército começará a construir os dois canais da transposição.

Não se sabe se já foram atendidas também as exigências do Tribunal de Contas da União, que identificou problemas que estariam encarecendo a obra em R$ 480 milhões. E uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região condicionou essa licença de instalação ao cumprimento das exigências. Segundo a representante do Ministério Público no processo, seria necessário antes complementar o estudo de impacto ambiental (aceito pelo Ibama). E está ajuizada ação de improbidade administrativa contra o presidente do Ibama, por haver concedido a licença prévia "sem observar as etapas do licenciamento".

É difícil entender a obstinação do governo federal em seguir a qualquer preço com o projeto, sem atender ainda aos muitos questionamentos da área científica. No workshop sobre a transposição promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Recife (10/4), por exemplo, mostrou-se:

A captação média autorizada (65 m3 por segundo) não é de apenas de 1,4% da vazão do rio, como tem sido anunciado; pode chegar a 25% da disponibilidade, já que dos 360 m3/segundo disponíveis, 335 já estão outorgados; e a captação ainda pode chegar a 127m3/segundo (47% da disponibilidade total);

a água transposta custará R$ 0,11 por metro cúbico, algumas vezes mais que a disponível hoje nas áreas a serem beneficiadas. Quem arcará com a diferença nos agronegócios beneficiados, que hoje pagam cinco vezes menos (R$ 0,023 por metro cúbico)? Haverá subsídios cruzados, que encarecerão a conta de toda a sociedade?

Também os mil participantes de recente (julho de 2005) congresso da Sociedade Brasileira de Limnologia (especialistas em águas interiores) enviaram carta ao ministro da Integração pedindo reavaliação dos impactos do projeto. Entre as questões ali levantadas está a desnecessidade de transposição para os Rios Apodi e Piranhas (RN) até 2020; e a situação "é semelhante em bacias do Ceará". Chama a atenção para os altos índices de evaporação (até 3.000 mm/ano) e infiltração a que estará sujeita a água transposta e considera "insuficiente" a base de dados sobre características e qualidade da água, que "não confere suporte para conclusões". Sugere o documento, por isso tudo, uma análise do projeto por especialistas contratados pelo Ibama, em vez de basear a licença "apenas nas avaliações precárias do EIA-Rima".

Ainda assim, a ANA - que havia recentemente pedido informações sobre os anunciados projetos de irrigação para agricultura familiar nas faixas marginais ao rio, que não constam do estudo, assim como sobre garantias para pagamento dos custos da água transposta - concedeu a outorga definitiva.

Agora, enfrentam o Ministério da Integração, a ANA, o Ibama, o governo federal a perplexidade dos cidadãos e a disposição do bispo Luiz Flávio e de seus seguidores, que se dizem dispostos a ir até o fim, porque, "quando a razão se extingue, a loucura é o caminho". É assustador.