Título: A polêmica do aborto
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2005, Espaço Aberto, p. A2

A questão do aborto vem cercada de tanto ruído, deformada por tantos equívocos, sujeita a um sem-número de sofismas e trapaças, que não pode ser discutida antes de ser depurada e saneada dos vícios que a obscurecem. Em primeiro lugar, a politização. Basta alguém se declarar contrário ao aborto para ser sumariamente tachado de ¿reacionário¿. Que dizer, então, do filósofo italiano Norberto Bobbio, estrela do pensamento progressista, que condenava o aborto? E que pensar da doutora Zilda Arns, conhecida pelo seu currículo de ação social, também ela frontalmente contestadora da prática abortiva? A politização do problema é atitude desleal, baseada na desqualificação cega do oponente, o que não significa um argumento, mas simples intolerância e preconceito.

Superado o baixo nível da desqualificação política, abrem-se duas vias de acesso ao problema: a via religiosa e a via científica. Na perspectiva religiosa, Deus é o criador da vida e só Ele pode tirá-la. O aborto voluntário e a manipulação das células-tronco embrionárias são repelidos como atentados à vida, admitindo-se como seguro e indiscutível que a vida humana tem início na fecundação do óvulo pelo espermatozóide. O ponto de vista religioso é respeitável e o mais profundo por ser o único que aponta diretamente para a sacralidade da vida humana.

A sacralidade é mais do que uma palavra pomposa. O sagrado consiste na própria realidade elevada à sua potência suprema de ser; o sagrado ¿está saturado de ser¿, isto é, de poder, perenidade e eficácia (Mircea Eliade). Nada mais prenhe e saturado de ser que a vida, a vida que produz todas as realidades. Por isso a vida é sagrada, mysterium fascinans, que se revela também um mysterium tremendum (Rudolf Otto). A vida exige respeito, e a argumentação religiosa contra o aborto é a única que demonstra pela vida todo o respeito que ela merece.

Isto posto, cumpre reconhecer que o ponto de vista religiosa não é último nem definitivo, porque lhe falta universalidade. Só tem valor para os religiosos, para os cristãos, não vale para a sociedade como um todo, hoje varrida pela descrença, pelo agnosticismo e pelo ateísmo. O planteamento religioso é sublime, profundo, o mais elevado de todos, mas suas razões só se impõem sustentadas na fé religiosa, para quem crê em Deus.

No concernente à via científica, ela não alcança mais validade universal que a via religiosa. Primeiro, o equacionamento científico está semeado de dúvidas até agora não resolvidas. Por exemplo, quando começa a vida sensível do nascituro? Sua capacidade emocional? Alguns pesquisadores atribuem ao feto emoções vivas como o medo, a alegria, a cólera, circunstância na qual o feto poderia sentir e pressentir sua própria eliminação, que seria, então, muito mais cruel. Segundo, a visão científica deixa de fora os aspectos éticos, jurídicos e humanos implicados no aborto, por fugirem à sua alçada. Terceiro, dado o caráter especializado da linguagem biológica e genética, seus dados são inacessíveis à maioria das pessoas, que só acreditam neles por fé, tal como ocorre na visão religiosa.

A questão do aborto só será bem colocada quando posta em alcance universal, e quando respeitado seu foco original, que não é a mãe da criança, e sim a própria criança, pois esta é a que morre sempre no processo abortivo. A mãe, sujeita aos abortos clandestinos praticados por amadores, pode ou não morrer, mas o nascituro morre sempre. Portanto é ele o foco, o núcleo, o sujeito (passivo) do aborto, que, na definição mais crua e realista consiste na supressão violenta do filho no seio da mãe. Em nosso tempo se luta bravamente pela preservação e pelo direito à vida dos animais e até das plantas. Terá a criança em via de conformação menos direito à vida que o animal e a planta?

Julián Marías, depois de expor suas reservas ao ponto de vista exclusivamente religioso (trata-se de um pensador católico) e científico, e de criticar as limitações do problema reduzido ao aspecto ético ou jurídico, propõe a visão antropológica do tema do aborto. Nada de complicar, e sim de descomplicar. Fundar a argumentação na ¿mera realidade do homem, tal como se vê, se vive e se compreende a si mesmo¿. Ora, a primeira coisa que acontece ao homem é nascer, ser dado à luz. Pois bem, a partir desta constatação óbvia, irrespondível, Marías abre os olhos para uma intuição magnífica expressa nas seguintes palavras: ¿O nascimento de uma criança é uma radical inovação da realidade: a aparição de uma realidade nova.¿ Nova em que sentido? No sentido de que a criança, inovação radical da realidade, não se reduz nem aos pais, de que deriva, nem aos elementos naturais que tomam parte na constituição de seu organismo.

¿O que é o filho pode `reduzir-se¿ a seus pais e ao mundo; mas o filho não é o que é. Ele é alguém. Não um que, e sim um quem, alguém a quem se diz tu, e que dirá, dentro de algum tempo, eu. E este quem é irredutível a tudo e a todos, desde os elementos químicos, seus pais, e até mesmo Deus. Ao dizer eu enfrenta-se com todo o universo, contrapõe-se polarmente a tudo o que não é ele, a todos os demais e a tudo mais.¿

A criança em formação, na medida em que é irredutível a qualquer outro ser, por isso mesmo é autônoma, isto é, assenta em si mesma sua realidade, e é portadora de direitos inalienáveis, o primeiro dos quais é o direito à vida. De onde se segue ser falso de toda a falsidade que o feto é ¿parte¿ do corpo da mãe, que dele poderia dispor a seu bel-prazer, inclusive para eliminá-lo. A mãe não pode dispor sobre a morte do filho em gestação, que abriga no seio, mas que não lhe pertence. Irredutível a tudo e a todos e por isso radicalmente autônomo, o filho só pertence a ele mesmo. Nem à mãe, nem à natureza, nem mesmo a Deus. ¿Ocorrida a concepção, o direito do concebido só pode ser satisfeito deixando-o nascer¿ (Norberto Bobbio).