Título: O material de construção
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/09/2005, Notas e Informações, p. A3

¿Volto ao Conselho de Ética cada vez mais convencido da minha inocência...¿ Essa inacreditável frase pronunciada pelo deputado e ex-ministro José Dirceu (PT-SP), no segundo depoimento que prestou terça-feira ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, além de ser uma pérola bestialógica é uma clara confissão de culpa, porquanto nunca se viu inocente algum precisar ser convencido da própria inocência ¿ e quem está ¿cada vez mais¿ é porque já esteve menos (convencido). Não sabemos que argumentos novos teriam contribuído para formar os elementos de convicção, em favor da própria inocência, do ex-todo-poderoso ministro-chefe da Casa Civil, articulador político do governo Lula, organizador de sua campanha e, por longos anos, presidente e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores. Teria sido a ¿convincente¿ retirada da representação, contra ele, por parte do PTB de seu ex-detrator, o ex-deputado Roberto Jefferson? Bem, se até Jefferson, agora, o julga inocente... (terá pensado). Sem dúvida, José Dirceu tem razão ao dizer que ¿não pode ser o único responsabilizado¿ pelas atitudes do PT, porque as decisões da campanha de 2002 ¿foram compartilhadas entre os líderes petistas, inclusive o presidente Lula¿. Ninguém pretende que o ex-ministro de Lula, por maior que tenha sido seu poder de influência no partido e no governo, vire uma espécie de bode expiatório. Mas aí duas coisas precisam ser esclarecidas: primeiro, a ¿campanha de 2002¿ não é o único foco das investigações em curso nas CPIs, na Polícia Federal e no Ministério Público, posto que a dinheirama circulante entre partidos, empresas e pessoas públicas, no bojo de todo esse escândalo, longe está de restringir-se aos ¿caixa 2¿ das campanhas eleitorais. Segundo, o aumento de participantes nos delitos não atenua as culpas individuais ¿ antes as agrava.

Ao negar a existência de provas do mensalão ou de elementos que possam incriminar sua pessoa, seu partido ou o governo Lula, Dirceu afirma que o que está se julgando (modéstia à parte) é sua história, sua participação na vida política do País e, em síntese, ¿o projeto político que construímos¿. Mais precisamente, não é o projeto político que está em julgamento, mas sim o ¿material¿ usado na sua construção ao longo da trajetória de Lula, seus prosélitos e seu partido rumo ao Poder e, depois dele conquistado, consolidar a conquista.

Por coincidência, no mesmo momento em que Dirceu, na Comissão de Ética, clamava que não havia provas do uso desse ¿material de construção¿ ¿ o presidente Lula proporcionava o flagrante do mais escandaloso e rasteiro trabalho de cooptação legislativa de que já se teve conhecimento nessa República, usando o ¿material¿ da construção do projeto petista: uma direta e explícita compra de votos de parlamentares por meio da aprovação de emendas, promessas de Ministérios, de verbas, de cargos públicos e demais prebendas, em troca de apoio a seu candidato à presidência da Câmara.

Seria o caso de parodiar Castro Alves e dizer que por uma fatalidade/ dessas que descem do além/ o dia que ouviu Dirceu/ ouviu Lula também.

E já que entre as ¿negociações¿ visando a impor seu candidato ao comando da Câmara federal, o presidente, vestindo um quimono entre judocas, advertiu que está pronto para lutar no ¿tapume¿ (como chamou o tatame), seria bom avisá-lo de que tapume algum esconderá métodos de luta merecedores de pronta desclassificação.

Mas não foi apenas o autoconvencimento da própria inocência que chamou a atenção no depoimento de Dirceu. Tão ilustrativo da sua mentalidade foi outro tópico, no qual, ao referir-se à ¿disputa pelo poder¿ no País, acusou ¿setores da mídia¿ de tentar ¿desestabilizar o governo e dar um golpe branco¿ porque ¿disputam o poder político¿. Confirma-se assim a noção deformada de Democracia de quem foi aprendê-la com Fidel Castro. Certamente ignora ele que, exercendo o chamado ¿quarto poder¿ das democracias contemporâneas, a imprensa apenas cumpre a sua função de fiscalização dos Poderes de Estado, para a informação e formação de opinião da sociedade a que aqueles Poderes pertencem, com exclusividade.

Com esse tipo de argumentação é possível que José Dirceu vá ficando cada vez mais convencido da sua inocência, mas dificilmente conseguirá prová-la àqueles que irão julgá-lo.