Título: 'Morte de Jean foi execução sumária'
Autor: João Caminoto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2005, Internacional, p. A34

Em declarações a jornal britânico, Celso Amorim destaca que brasileiro não era acusado de nada, era simplesmente o homem errado

Em declarações publicadas ontem pelo jornal The Guardian, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, definiu como "execução sumária" a morte do brasileiro Jean Charles de Menezes, ocorrida durante uma operação antiterrorismo da Scotland Yard em 22 de julho. Agentes policiais, pensando que Jean fosse um terrorista, o mataram com oito tiros, sete deles na cabeça, numa estação do metrô em Londres. Amorim ressaltou que o combate ao terrorismo não deve ameaçar o respeito aos direitos humanos. A família de Jean e governo brasileiro, acrescentou, só se sentirão reparados moralmente quando a ação policial for condenada. Maria e Matozinhos, pais de Jean, foram a Londres para acompanhar as investigações.

Amorim afirmou entender o choque causado nos britânicos pelos atentados de 7 e 21 de julho em Londres e reiterou a solidariedade do governo brasileiro no combate ao terror. "Mas, no Brasil, também ficamos chocados ao ver que um brasileiro inocente podia ser confundido com um terrorista e alvejado fatalmente pela polícia", disse. "Eu quero evitar palavras fortes, mas isso foi um erro trágico, para dizer o mínimo. Foi um caso de execução sumária de uma pessoa errada."

O ministro observou que mesmo quando o suspeito é acusado de um crime, ele tem o direito de se defender na Justiça. Mas Jean "não era nem mesmo acusado de nada - ele era simplesmente o homem errado".

Amorim disse que não quer julgar a ação policial e espera que os resultados da investigação promovida por uma comissão independente esclareçam o caso. Mas, segundo ele, talvez os métodos policiais devessem ser revistos. "Devemos isso à causa dos direitos humanos para garantir que não ataquemos o inocente, senão estaremos ajudando os terroristas, que desejam criar um clima de insegurança", assinalou. "Agora, cidadãos pacíficos não estão com medo apenas dos terroristas suicidas, mas também da polícia."

Amorim lembrou que o chanceler britânico, Jack Straw, tem salientando que, como o terrorismo é internacional, as normas de combate a ele também têm de ser internacionais. "As regras do tratamento policial dado ao caso Menezes nunca foram discutidas antes em lugar nenhum", afirmou. "Não estou dizendo que não é um direito soberano do Reino Unido estabelecer suas regras no combate ao terrorismo. Mas, para uma cooperação autêntica, vamos ter de discuti-las também."

O ministro disse esperar que o clima de colaboração com as autoridades britânicas continue e que a família de Jean seja adequadamente auxiliada. Ele observou que há também a questão da reparação financeira, "que o governo britânico deve à família, e a questão de reparação moral, que também preocupa toda nação". A reparação moral, assinalou Amorim, só terá ocorrido quando a ação policial no caso for condenada.

"Você não pode fechar o caso até que ocorra uma investigação plena. Se forem necessárias ações nos tribunais, então isso tem de acontecer", assinalou o chanceler brasileiro.

Segundo Amorim, a comunidade internacional precisa discutir maneiras de combater o terrorismo sem ameaçar os direitos humanos. Amorim observa que a situação no Brasil está longe de ser perfeita, e muitos policiais foram presos recentemente, especialmente no Rio.

"O Brasil ainda é um país em desenvolvimento e por causa disso às vezes acontecem coisas que não deveriam acontecer", afirmou. Ele salientou que o governo brasileiro está tentando melhorar a situação, e uma das ações tomadas já há algum tempo foi o estabelecimento de uma política aberta e transparente para os direitos humanos. "Espero que a cobertura sobre o Brasil que apareceu nos tablóides britânicos não seja usada por aqueles que cometeram essa morte."

O ministro lembrou que o Brasil e outros países em desenvolvimento estão reivindicando uma voz no Conselho de Segurança da ONU "para aqueles que não encaram cada problema no mundo apenas em termos de segurança".

"Atualmente há casos que são discutidos porque interessam a algumas potências, enquanto outros são ignorados porque não interessam a elas", afirmou. "Trata-se de uma questão de todos terem os mesmos padrões. O Brasil tem muitos problemas, mas temos convidado repórteres especializados em direitos humanos para investigar e propor mudanças."

Segundo Amorim, o governo brasileiro é realista e sabe que a ONU não pode ser reformadas da noite para o dia. "Mas estamos tentando criar um equilíbrio entre países em desenvolvimento e desenvolvidos." Ele disse que esse equilíbrio não será ideal, pois os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança continuarão tendo poder de veto. "Para uma reforma completa da ONU seria necessária outra guerra mundial. Felizmente, isso não acontecerá, por isso precisamos melhorá-la gradualmente."

O Itamaraty informou que o artigo publicado pelo Guardian, no qual Amorim comenta o caso Jean na primeira pessoa, foi produzido pelo jornal britânico com base em entrevista concedida pelo ministro há um mês.