Título: Chávez rouba o show
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/10/2005, Notas e Informações, p. A3

A primeira reunião de cúpula da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), realizada em Brasília a convite do governo Lula, só não foi um retumbante fiasco diplomático graças ao empenho do presidente Hugo Chávez, da Venezuela. A Comunidade Sul-Americana, na verdade, é um amálgama da Comunidade Andina, presidida, no momento, por Chávez, e do Mercosul, cujo presidente pró-tempore, o uruguaio Tabaré Vásquez, não compareceu à reunião. Dos 12 presidentes da região, só 8 se abalaram a ir a Brasília. E o fiasco só não foi maior porque, no último momento, o chanceler Ali Rodriguez, da Venezuela, telefonou para o presidente Néstor Kirchner - que já havia anunciado que não iria a Brasília - pedindo-lhe que fosse se encontrar com o coronel Hugo Chávez, para a assinatura de alguns acordos na área energética. Kirchner atendeu ao apelo, participou do jantar protocolar com os demais convidados, assinou os papéis preparados pela Venezuela - inclusive a compra pela estatal PDVSA de 150 postos de serviço da empresa argentina Rhasa, por US$ 92 milhões - e na sexta-feira pela manhã voltou à Argentina, sem esperar pela sessão de abertura da cúpula presidencial. Além dos interesses na área energética, outros motivos concretos fazem com que uma convocação de Chávez mobilize Kirchner mais que um convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Chávez, por exemplo, reservou US$ 500 milhões das receitas do petróleo para comprar títulos da dívida argentina, contribuindo para que o país chegue ao final do ano sem problemas de financiamento de suas contas externas.

Chávez também roubou o espetáculo ao assinar com o presidente Lula, na véspera da reunião de cúpula, o acordo que permitirá a construção de uma refinaria de petróleo pesado em Pernambuco. Trata-se de um empreendimento que custará US$ 2,5 bilhões e refinará 200 mil barris por dia, dividindo-se as despesas e a produção entre as duas empresas petrolíferas estatais. A localização da planta em Pernambuco, segundo se informa, foi uma escolha de Chávez. E, para ele, o acordo entre as duas empresas não atendeu apenas à necessidade de expansão de seus negócios. Segundo o líder bolivariano, a joint venture e a Comunidade Sul-Americana - "uma potência sul-americana" - foram criadas para enfrentar "o gigante de sete léguas", como define, copiando José Martí, os EUA.

O presidente Lula, como sempre acontece, deixou-se ofuscar pela retórica de Hugo Chávez. Lembrou as dificuldades que o coronel golpista teve para ampliar e consolidar seu poder na Venezuela e observou que "ninguém pode acusar aquele país de não ter democracia. Poder-se-ia até dizer que tem (democracia) em excesso". Que o digam os empresários e proprietários rurais venezuelanos, que correm o risco de ter suas empresas expropriadas "para fins sociais", e a imprensa local, que vem sofrendo um progressivo processo de amordaçamento. E, como se não bastasse o "excesso de democracia", o presidente Lula atropelou a verdade, afirmando que Chávez foi o único governante venezuelano a utilizar os recursos da exploração do petróleo para reduzir a pobreza.

Três dias antes de Lula proclamar as excelências do governo Chávez, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o Instituto Nacional de Estatística, da Venezuela, divulgaram pesquisas que mostram que a pobreza absoluta naquele país cresceu 4%, embora as receitas do petróleo tenham crescido cerca de quatro vezes. O dinheiro do petróleo não está acabando com a pobreza venezuelana; está consolidando os enormes poderes acumulados por Chávez, no plano interno, e a sua influência como líder da "resistência anti-yankee", perante a claque nacional-populista que lhe presta homenagens, inclusive no Brasil.

Esteja onde estiver - para parafrasear o presidente Lula -, Tiradentes não há de acreditar que o "sonho megalomaníaco" da união sul-americana e da mudança da geografia comercial do mundo esteja se concretizando, como proclamou. A imensa tarefa de integração comercial, econômica e política de um continente não se faz com reuniões a que não comparece um terço dos presidentes da região e muito menos com declarações genéricas que evidenciam a falta de consenso sobre pontos básicos, a ponto de a proposta do Chile de fazer a área de livre comércio funcionar em 2010 ter sido recusada.