Título: A demagogia das cotas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/10/2005, Notas E Informações, p. A3

Passou praticamente despercebida a recente aprovação, pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, de um projeto de lei que institui o sistema de cotas raciais no acesso ao ensino superior. As universidades federais e as escolas técnicas mantidas pela União terão prazo de quatro anos para preencher 50% das vagas de cada curso de graduação pelo sistema de cotas. Apresentado pela deputada Nice Lobão (PFL-MA) e alterado por uma emenda do deputado Carlos Abicalil (PT-MT), o projeto ainda tem de passar pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Minorias e Direitos Humanos. Se for aprovado nas duas, terá tramitado em caráter terminativo e poderá ser enviado ao Senado, sem a necessidade de ser submetido ao plenário da Câmara.

O próprio governo foi surpreendido pela decisão da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. Isso porque o substitutivo por ela aprovado, sob forte pressão de movimentos sociais e entidades corporativas, é mais radical do que estipula a respeito a proposta de reforma universitária defendida pelo Ministério da Educação (MEC). A reforma concede um prazo de dez anos para que as instituições de ensino superior reservem 50% de suas vagas para negros, índios e alunos oriundos da rede pública de ensino fundamental e médio.

Essa redução do prazo de dez para quatro anos acarretará uma sobrecarga administrativa para as instituições de ensino superior, obrigando-as a reformular seus processos seletivos, seus projetos pedagógicos e seus currículos. Além disso, o caráter radical do substitutivo aprovado facilitará o acesso às universidades de estudantes despreparados, o que certamente comprometeria os padrões de qualidade das universidades públicas, que são as melhores do País.

O próprio ministro da Educação, Fernando Haddad, reconhecendo esse risco, invocou a necessidade de se preservar o princípio da meritocracia, contrapondo-se ao substitutivo do deputado Carlos Abicalil. Em quase três anos de governo do presidente Lula, esta foi a primeira vez que uma autoridade educacional reconheceu, publicamente e de forma objetiva, que o sistema de cotas pode "ter um impacto negativo na qualidade do ensino público".

Com a necessária cautela, para não ferir suscetibilidades políticas e não melindrar seu antecessor, Tarso Genro, de quem foi secretário-executivo, Haddad afirmou que o sucesso da adoção do sistema de cotas, como política de ação afirmativa destinada a reduzir desigualdades sociais e econômicas, depende de uma urgente melhoria da rede pública de ensino fundamental e médio.

Somente assim os alunos dos segmentos sociais menos favorecidos, oriundos de escolas públicas, poderiam acompanhar aulas de graduação em igualdade de condições com os colegas vindos de bons colégios particulares.

Foi por esse motivo, disse Haddad, que o MEC estabeleceu o prazo de dez anos para as universidades federais reservarem 50% das vagas para as cotas. "É o tempo que o Estado estava se dando para que as ações em torno da educação básica produzissem resultados", concluiu, depois de anunciar que irá mobilizar as lideranças partidárias do governo para alterar o substitutivo do deputado Carlos Abicalil que a Comissão de Educação e Cultura da Câmara aprovou sem alarde, em meio à crise política.

A iniciativa do ministro é apoiada por vários integrantes do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), todos preocupados com os efeitos nefastos para a educação pública que a redução no prazo de dez para quatro anos na implementação do sistema de cotas poderá causar.

O que exclui os segmentos menos favorecidos da sociedade da educação superior não são os processos de admissão à universidade. A integração social e o combate à exclusão econômica, como mostram os países que conseguiram vencer esse duplo desafio, são processos que só se tornam eficazes quando as escolas públicas fornecem educação básica de boa qualidade. O resto é demagogia.