Título: Proposta indecente
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/10/2005, Notas e Informações, p. A3

É do presidente Lula, segundo testemunhos merecedores de crédito, a paternidade da idéia da renúncia dos seis deputados petistas passíveis de cassação em troca da garantia da legenda para que disputem a eleição em 2006. Eles fazem parte da lista dos 13, de diversos partidos, em relação aos quais a Mesa da Câmara deverá pedir a abertura de processos por quebra de decoro parlamentar, no Conselho de Ética, provavelmente na terça-feira. Mas a intenção de Lula não é proteger os companheiros do risco de ficarem despojados dos seus direitos políticos por 8 anos, em conseqüência da eventual perda dos seus mandatos. É, isso sim, impedir o prosseguimento do processo que, para todos os efeitos, a denúncia do mensalão instaurou contra o seu governo e o PT, pela montagem de um sistema de compra de poder político com dinheiro sujo em escala sem precedentes. Há lógica na indecência de tirar proveito da legislação corporativista pela qual a renúncia do parlamentar mata no nascedouro a ação de que é alvo, permitindo que volte a se candidatar na primeira oportunidade. Como se sabe, o Congresso não cassa mandatos da noite para o dia. Da acolhida do pedido à votação final em plenário, o rito compreende 8 etapas, ao longo de 90 dias, prorrogáveis por outro tanto. Em cada fase de cada processo, pode-se dizer, a moralidade do governo é que estará em julgamento. Mesmo na incerta hipótese de que disso não resultem danos adicionais à imagem do presidente, ele estará condenado a iniciar o ano eleitoral de 2006 ainda sob o efeito dos escândalos de corrupção, um sombrio contraponto à retórica triunfalista com que tenta recuperar sua combalida popularidade.

A crônica dos últimos quatro meses já demonstrou e tornou a demonstrar que não há limites para a elasticidade da moral petista, endossada pela sua figura maior. Mesmo assim, não se esperava mais essa. Afinal, o próprio presidente interino da legenda, Tarso Genro, dissera - e continua defendendo a medida - que os companheiros-deputados que renunciassem para se livrar de processos de cassação seriam excluídos das listas de candidatos do partido em 2006. Terão sim, ficou decidido - e a refundação ética do PT que fique para as calendas. Outro inequívoco sinal da flexibilidade ética da gente de Lula é o já antecipado discurso da renúncia, a versão da esperteza para consumo externo: o julgamento no Conselho de Ética, à semelhança do que teria sido a inclusão dos nomes dos renunciantes no relatório conjunto das CPIs, não passará de um "linchamento político", pouco importando que eles consigam provar a sua inocência.

Note-se o retrocesso retórico. Quando se tornaram irrefutáveis as evidências da compra do apoio de políticos ao governo e dos demais ilícitos abrangidos pelo termo mensalão, o presidente Lula declarou-se traído e o partido pôs em circulação o eufemismo "erro" para admitir, com gritante relutância, o que em português claro se chama delito. Agora, nem isso: são inocentes cada um e todos os seis petistas cassáveis por haverem sacado, em conjunto, algo como R$ 1 milhão das contas das empresas do benfeitor-geral Marcos Valério. Sem esquecer o sétimo, o inocente dos inocentes José Dirceu, contra quem o respectivo processo tramita no Conselho da Câmara. Apesar das pressões de Lula, ao que consta por intermédio do senador José Sarney e do titular da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o ex-ministro se recusou a renunciar ao mandato. Caso os demais aceitem a saída desonrosa, Dirceu poderá ser o único petista cassado, o que seria uma justiça poética.

Para Lula, o grande perigo é a indecência não bastar. Pois a sua situação talvez dependa menos do desenrolar dos processos de cassação e do número de cassados potenciais - além dos seis do PT, quatro outros do grupo dos 13 devem renunciar - do que das apurações da trinca de CPIs em operação. A dos Correios desbasta montanhas de papéis inflamáveis, e ao seu presidente, senador Delcídio Amaral, se atribui a previsão de que ela não concluirá os seus trabalhos antes de março. A da Compra de Votos tampouco está para fechar as portas. E a dos Bingos - o novo centro das atenções no Congresso - resolveu investigar a fundo o caso de Santo André. No dia 26, fará a acareação dos irmãos do prefeito assassinado Celso Daniel com o chefe do gabinete do presidente Lula, por eles citado como o transportador dos valores achacados para José Dirceu. Perto disso, as renúncias petistas poderão ser uma ignóbil inutilidade.