Título: O inimigo é a violência
Autor: Almir Pazzianotto Pinto
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Em vez de empreender medidas fortes voltadas para a redução da violência, o governo federal desencadeia campanha destinada a retirar armas de fogo que se encontram em poder de pessoas de bem. O referendo do próximo dia 23 tenta inverter os valores morais da sociedade brasileira. Aos bandidos, tudo; ao cidadão que paga impostos, nada. Explico-me. O que provoca temor-pânico na sociedade não é a propriedade de arma de calibre reduzido, por mínima porcentagem da população, mas, sim, a onda de insegurança e de crueldade que assola famílias bem constituídas de todas as camadas sociais.

São exemplos da carnificina que nos amedronta e apavora os casos da família morta a tiros e golpes de enxada, por facínoras, para roubarem alguns mil dólares, economizados durante anos de sacrifícios no Japão; do menino seqüestrado, amarrado e jogado em represa para morrer afogado; de criminosos, em regime de reclusão, degolados em brigas de quadrilhas, dentro da penitenciária; do vigilante escolar abatido no estabelecimento de ensino em que trabalhava; do fazendeiro gravemente ferido ao reagir a tentativa de assalto, no interior da sua propriedade; de delegado e investigadores espancados por prisioneiros, em fuga de distrito policial; da população de pequeno município do Pará que, revoltada com a onda de estupros, e a ausência de providências do Estado, depreda e põe fogo em prédios e veículos públicos; dos conflitos entre torcidas, dentro e fora dos estádios.

Afora crimes como esses, escolhidos aleatoriamente nas notícias da imprensa, inúmeros casos de crueldade se estão repetindo, e não despertam a atenção, porque passaram a fazer parte do cotidiano. Por outro lado, dando divulgação à violência, jornais publicam, emissoras de rádio noticiam, televisões, abertas e a cabo, transmitem novelas, minisséries, filmes e reportagens que têm como enredo homicídios, traições, estelionatos, adultérios, arbitrariedades e truculências, passando uma imagem de sociedade decadente e corrompida. Há, até, o "rei do videogame sangrento", como publicou o Estado, no caderno Link de 24 de setembro.

Morre-se mais em acidentes de trânsito do que por assassinato. A ninguém, todavia, ocorre proibir a venda de veículos.

Desde épocas remotas, para se proteger contra múltiplas formas de hostilidades e ataques, o ser humano aprendeu a construir abrigos, levantar paredes, abrir fossos e a se munir de algum instrumento de defesa. Da pedra ao porrete, à lança, ao escudo, ao arco e flecha, aos machados, espadas, até inventar a pólvora e as armas de fogo.

A velha garrucha, de um ou dois canos, está entre os mais antigos desses artefatos, e pode ser fabricada em oficinas de fundo de quintal. Na Guerra de Canudos, descrita por Euclides da Cunha em Os Sertões, tropas do Exército, equipadas com canhões Krupp, metralhadoras Nordenfeldt, fuzis Comblain e Manlicher, foram batidas por esfarrapados jagunços de Antonio Conselheiro, munidos de bacamartes, clavinotes, lazarinas, punhais e facas. Artefatos rudimentares como esses sobrevivem em nossos dias, e podem servir a intentos criminosos, independentemente de aquisição registrada e controlada. Veja-se a notícia publicada nos jornais de São Paulo: "Trio é preso e confessa assassinato de taxista." Foram usadas duas armas de fogo de fabricação caseira, apreendidas pela polícia.

Até o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, admite que a campanha será inócua contra os marginais. Não conseguirá, também, acabar com furtos e desvios de armamentos em quartéis e arsenais. Os delinqüentes encontrarão caminhos internos e externos para adquirir pistolas, granadas, metralhadoras. O contrabando continuará a ser utilizado para equipar o crime organizado, e fornecer a artilharia pesada de que se valem, nos morros do Rio de Janeiro, quadrilhas de narcotraficantes.

Registre-se, ademais, que aos empresários de alto poder aquisitivo pouco importa o referendo. Eles se protegem com veículos blindados, construindo "bunkers", contratando empresas de segurança.

A iniciativa do governo tem cunho populista-demagógico. Destina-se a distrair a atenção de graves problemas de natureza socioeconômica, e fazer crer, às pessoas mal informadas, que está preocupado com a vida, a integridade física e o patrimônio de cada cidadão.

Quem viver verá. Após o referendo, qualquer que seja o resultado, a violência continuará presente em nosso meio, ferindo e matando inocentes, já que as raízes do problema são outras. Não se localizam na compra de revólver, de calibre permitido, para defesa pessoal e da família.

Aponto, afinal, como ridículo o argumento dos defensores do "sim", quando aludem a crianças vítimas de disparos acidentais, dentro das próprias residências. Neste país, onde o poder público se tem revelado incapaz de resolver a tragédia da infância abandonada e carente, que cheira cola, usa drogas, perambula pelas grandes cidades, mofa na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), ou definha em condições subumanas no campo, é hipocrisia apresentar casos isolados como estandartes de campanha política.

Filiado à corrente que dirá "não", recordo, àqueles que praticam a fé cristã, a palavra sagrada da Bíblia: "Quando um homem valente e bem armado guarda a própria casa, tudo o que ele tem está seguro" (Lucas, 11:21).