Título: Salvaguardas, enfim
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2005, Notas e Informações, p. A3

O governo regulamentou, enfim, o uso de salvaguardas contra a importação de produtos chineses, seguindo com grande atraso a lição de realismo dos Estados Unidos, da União Européia e também da Argentina. Não seria mais possível protelar essa decisão, depois da frustrante viagem a Pequim do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Furlan. Ele voltou ao Brasil, depois de dois dias de conversações, sem obter do governo chinês o compromisso de restrição voluntária de exportações consideradas prejudiciais à indústria brasileira. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda esperou alguns dias, mas acabou assinando nesta quarta-feira dois decretos sobre salvaguardas. Um é específico para têxteis. Outro refere-se a medidas transitórias destinadas à proteção de qualquer setor ameaçado por um grande aumento de importações de produtos fabricados na China.

Se os tivesse assinado há mais tempo, seriam apenas dois instrumentos de proteção comercial, iguais a tantos outros adotados pelos governos de todo o mundo. Assinados agora, equivalem também ao reconhecimento de um enorme erro de avaliação, apontado muitas vezes, desde o ano passado, por empresários e analistas do comércio internacional.

Em novembro do ano passado, durante visita do presidente chinês Hu Jintao, o governo brasileiro reconheceu a China, oficialmente, como economia de mercado. Nenhuma grande potência econômica foi tão longe. Apesar do programa de reformas adotado há uns 20 anos, a economia chinesa continua amplamente sujeita à interferência do Estado.

O governo tentou justificar sua ousadia - ou imprudência, segundo os críticos - agitando uma bandeira de parceria estratégica. Os chineses continuariam comprando muito do Brasil, segundo o governo. Realizariam grandes investimentos em projetos de infra-estrutura.

Além disso, seriam companheiros importantes, segundo a nova doutrina do Itamaraty, no grande confronto com as potências do Norte. A aliança com a China seria parte do grande projeto do presidente Lula de redesenhar a geografia econômica e comercial do mundo. Enfim, deveriam apoiar a pretensão brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Se tivessem o mínimo indispensável de bom senso, os formuladores da nova diplomacia brasileira teriam levado em conta as barreiras impostas pelo governo chinês à soja brasileira. Não houve, durante a visita do presidente Hu Jintao, nenhuma concessão comercial do lado chinês. As conversas entre os diplomatas brasileiros e os membros da delegação chinesa chegaram à aspereza, segundo testemunhas.

Mas a luz não se acendeu. O presidente Lula e seus estrategistas internacionais continuaram agindo como se pudessem articular, com os governos da China, da Índia, da África do Sul e de outros países emergentes, um grande movimento de redenção internacional.

Os investimentos não vieram. Não houve apoio à reforma do Conselho de Segurança. As importações de produtos chineses começaram a crescer de forma preocupante para alguns setores, que reclamaram proteção. Mas o governo ainda não estava preparado para oferecê-la, porque não havia regulamentado as salvaguardas. Os decretos ficaram engavetados quatro meses na Casa Civil.

O mecanismo de proteção, desenhado segundo as normas da Organização Mundial do Comércio, agora está disponível e poderá ser acionado.

Um dos decretos menciona o risco de desvio de comércio. Esse desvio pode ser ocasionado pela criação, num terceiro mercado, de barreiras protetoras. Uma saída para os chineses, nesse caso, seria reorientar parte de suas exportações para outros destinos, como o Brasil. Esse risco foi há muito percebido por empresários e especialistas em comércio. A indústria brasileira, advertiam, poderá acabar sendo prejudicada, indiretamente, pelas barreiras impostas a produtos chineses na Europa ou nos Estados Unidos.

Há poucos dias, o chanceler Celso Amorim declarou-se decepcionado com as atitudes do governo chinês. Nada mais compreensível. Só se decepciona quem acreditou. Pelo menos esse dissabor não tiveram as pessoas sensatas.