Título: De Geni para Tieta...
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Metrópole, p. C4
Em tempos de culto às celebridades, prostitutas conseguem até simpatia social ao assumir publicamente o que fazem
Cristal de Luna saiu de sua cidade natal, Lucélia - no interior de São Paulo -, como uma reencarnação de Geni. Voltou dois anos depois, como uma reedição de Tieta. A transformação aconteceu assim: décima filha de uma família pobre, balconista, estudante de enfermagem sem dinheiro para pagar a faculdade, ela analisou as opções e achou que apelar para o escambo sexual era o caminho mais curto para melhorar de vida. Em poucos meses, notou os olhares desconfiados da vizinhança. Mais algum tempo e viraram ofensas pesadas. Cristal juntou suas coisas e mudou para São Paulo. Fugiu, mas mesmo assim achou que não tinha o que esconder. Vai a programas de entrevistas na televisão, fala em rádios e ganha perfis em revistas. Em todos os lugares, enche o pulmão e diz: "Eu sou garota de programa." A bordo da fama recente, fez uma visita à cidade natal. "Quando cheguei, encontrei faixas de boas-vindas", comemora. Morena, voz de criança, Cristal integra um novo grupo de garotas de programa publicamente assumidas. Essa turma não é propriamente uma novidade histórica, mas consegue simpatia social por meio de um fenômeno recente: o culto às celebridades. Em uma movimentação que pareceria improvável há alguns anos, elas aparecem em programas de auditório, viram musas da internet e vão a emissoras de rádio proclamar em bom som o que fazem para viver. Algumas até já deram autógrafos por aí.
Nos últimos meses, Cristal participou de debates em programas de televisão. Em um deles, pontificou em temas espinhosos como: "A prostituição deve ser regulamentada?" Com calça de popozuda e tentando fazer ares de socióloga, ela não tinha opinião formada. Mas enrolou direitinho. Há duas semanas, saiu para fazer compras na Avenida Paulista. Foi reconhecida por um casal, respondeu a acenos. Ficou sem graça ao ver que crianças perguntavam aos pais quem ela era, mas no fim saiu dali feliz da vida. "As pessoas hoje me aceitam. Até meus pais sabem. Minha mãe às vezes diz pra eu sair dessa vida, mas também não me condena", afirma.
A exposição das garotas de programa - e a reação do público - até poderia ser interpretada como mais um sinal da liberalização de costumes dos últimos anos. Em tempos em que a Parada Gay arrasta milhões de pessoas dispostas a ir às ruas proclamar sua opção sexual - ou que posar nua em revistas masculinas deixou de ser sinal de depravação e se transformou em caminho legítimo para moças que querem comprar um apartamento -, até que faz sentido achar que a prostituição está em vias de conseguir status de profissão. Mas a vida como ela é desautoriza a tese de mudança de costumes.
"A sociedade cultua a celebridade independente do que ela faz. Essas garotas acabam reconhecidas não pelo que fazem, mas porque estão famosas", diz a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Faculdade de Medicina da USP.
A NÚMERO UM
Bruna Surfistinha é hoje a mais famosa entre as garotas de programa que aposentaram aqueles eufemismos manjadíssimos - recepcionista, atriz & modelo e assim por diante. Anda com a agenda cheia de compromissos com a imprensa. Posa para ensaios fotográficos e conta sua vida - quase sempre com alguns floreios. Aos 20 anos - 3 deles no "ramo", como gosta de dizer - ficou famosa por causa de um blog com atualizações quase diárias, onde vai jogando os detalhes de sua vida e os pensamentos que lhe ocorrem. Já falou para Época, Vip, Sexy e Vogue. E seu diário virtual virou tema de reportagem em revistas e cadernos de informática.
Com toda essa movimentação, Bruna foi reconhecida nas ruas - e virou um mito da internet. Recebe mensagens de pessoas que acompanham seu cotidiano e até opinam sobre seus namoros reais. "Ela é um personagem", define o namorado, um ex-cliente que se identifica apenas como Pedro. "Não apareço porque não quero pegar carona no sucesso dela", afirma. Maneiras educadas, discurso articulado, usando terno e gravata, Pedro da Bruna - como já é chamado na web - conta que se apaixonou por ela assim que a conheceu melhor. Há dois meses, mudou para o flat onde ela mora e recebe clientes. "Não tenho ciúmes do trabalho dela. Pelo contrário, tenho orgulho de tudo o que ela fez. A Bruna virou um marco ao resolver aparecer em público. Querer tirá-la dessa vida agora seria uma prova de preconceito meu", diz. Bruna cobra R$ 300,00 por programa. E diz que ganha até R$ 15 mil por mês.
Nas entrevistas freqüentes, as garotas assumidas respondem à curiosidade geral sobre a velha dúvida que ronda a prostituição adulta e por livre escolha: "Por que você faz isso?" As respostas passam longe da moral e raspam em razões econômicas. "Sou garota de programa porque não quero voltar para a minha cidade", responde a gaúcha Nanda Passos. Há um ano, Nanda saiu da casa dos pais para trabalhar em uma churrascaria em Santo André. Cumpria jornada de 12 horas e recebia R$ 280,00 por quinzena. O emprego durou três meses, porque a churrascaria fechou. Filha de uma sargento, Nanda resolveu ficar em São Paulo. " Decidi fazer programas. E, se resolvi fazer, não vou esconder de ninguém", afirma. Há algumas semanas, ela entrou em um ônibus - um dia depois de participar de uma entrevista na televisão. Uma moça pegou em seu braço e disse que ela estava muito bem na TV. "Se alguém pensou algo contra mim ali, não deu para perceber."
Como acontece com tudo o que prospera no mundo da ilegalidade, a prostituição raramente aparece sozinha. A "profissão", como frisam algumas de suas representantes, costuma existir no entorno de um mundo barra-pesada. O tráfico de drogas é um desses acompanhamentos. A coação também. Pela lei brasileira, é crime induzir, atrair, facilitar, tirar proveito ou impedir que alguém abandone a prostituição. Agenciar pode dar de 3 a 8 anos de prisão.
As assumidas, no entanto, dizem que uma das vantagens de virar um personagem é conseguir ficar longe desse mundo. "Eu dou meu preço e faço o que quero. Sou dona do meu corpo", diz Bruna Surfistinha - que está em plena legalidade. "Não há delito em assumir publicamente a prostituição. É apenas uma questão de liberdade sexual e a moral de cada um", afirma o criminalista Luiz Flávio Gomes.
Amparadas pela lei, as moças saem do armário e gostam quando são chamadas a filosofar sobre o que fazem. Mesmo assim, dizem que esperam um futuro melhor. E todas afirmam que pretendem aposentar a fama, mudar a aparência, apagar o passado. "Todo mundo que entra nessa vida quer parar. Eu vou juntar dinheiro e sair rápido", afirma Nanda Passos. "Vou parar. E se um dia eu tiver uma filha, vou dizer: mamãe fez programa e se deu bem. Mas você não vai precisar fazer, como ela precisou", afirma Bruna.
No fim das contas, elas assumem o que fazem - mas apenas pela metade. "Assumir a identidade social em público torna a vida delas mais fácil, assim não precisam se esconder o tempo inteiro. Mas isso não quer dizer que tenham sido aceitas ou que também não tenham um julgamento moral do que fazem", diz Oswaldo Rodrigues, presidente da Sociedade Brasileira para Estudos da Sexualidade Humana.