Título: Em Minas, tesouro da arqueologia sob ameaça
Autor: Eduardo Kattah
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Vida&, p. A30

Lapa do Sumidouro, onde Peter Lund fez grandes descobertas, está sendo depredada

O desempregado Hélio Pereira de Almeida, de 46 anos, franze a testa e admite que nunca ouviu falar "desse tal de Lund". Morador do distrito de Quinta do Fidalgo, em Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, ele passa quase todas as manhãs à beira da lagoa do Sumidouro para "garantir o almoço". Almeida virou pescador por necessidade. Não consegue trabalho nas pequenas empresas de beneficiamento de pedra da região. Mal sabe que ali, no local onde pacientemente tenta fisgar tilápias, encontra-se um sítio considerado referência internacional para pesquisas arqueológicas e paleontológicas e fonte de vestígios fósseis que ajudaram a elucidar a pré-história americana.

Foi na região cárstica de Lagoa Santa que há 170 anos o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) deu início a um trabalho que serviria de base para a formulação de teses revolucionárias - que estão sendo comprovadas - e a derrubada de um paradigma científico da época.

Pesquisas ganharam impulso quando o dinamarquês explorou a chamada Lapa do Sumidouro, conjunto de gruta e um grande paredão de calcário margeado pelo lagoa. Ali, Lund, considerado o pai da paleontologia, da arqueologia e da espeleologia brasileiras, fez as suas mais importantes descobertas.

Um patrimônio histórico e científico que hoje está ameaçado pela ocupação indiscriminada, vandalismo e falta de um efetivo plano de preservação. Embora fique em área de proteção ambiental (APA) e seja tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha), o Sumidouro está em acelerado processo de depredação.

As pinturas rupestres no maciço calcário (chamado de abrigo) são cada vez menos visíveis e a maior parte já foi sobreposta por pichações. Restos de fogueiras e lixo industrial estão por todos os lados. No entorno do pequeno lago, surgiram nos últimos anos casas e proliferam as pedreiras que exploram a chamada pedra lagoa santa. Quando o nível da água está baixo, qualquer veículo automotor chega ao local. Em alguns pontos, velhas cercas ainda resistem de pé, mas nada protegem.

"É um sítio protegido pelas Constituições federal e estadual, dentro de uma APA cárstica. E ninguém faz nada", indigna-se o paleontólogo Cástor Cartelle, curador de paleontologia do Museu de Ciências Naturais da PUC-Minas e professor voluntário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Vivo brigando por isso desde os anos 90", diz o espanhol naturalizado brasileiro, para quem, neste caso, falta simplesmente "seguir a lei".

UMA ESTRADA POLÊMICA

Cartelle denuncia, principalmente, a construção, em 1992, pela prefeitura, de uma estrada que cruza a lagoa na seu início, no ponto oposto ao paredão. Na época de estiagem, a estrada fica visível. "O órgão ambiental do Estado exigiu sua retirada e nada é feito. É uma zorra", desabafa.

O arqueólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), considera urgente que o Parque Estadual do Sumidouro seja implantado, por causa da importância do local para a comunidade científica. "O estudo da origem do homem no Novo Mundo começou ali, graças ao trabalho do Peter Lund, em meados do século 19", observa.

Quando entrou na gruta do Sumidouro, em 1843 (aproveitando-se de uma estiagem, já que ela fica submersa a maior parte do tempo), Lund encontrou ossos fossilizados de humanos de várias idades pré-históricas, além de espécies animais extintas e recentes.

A partir dessa descoberta, Lund levantou a hipótese de que o homem primitivo conviveu com a chamada megafauna - preguiças gigantes, cavalos e tigres dente-de-sabre - na América do Sul. Na época, essa possibilidade ainda não havia sido cogitada.

A tese de que espécies de mamíferos gigantes do final do pleistoceno (de 1,8 milhão a 11 mil anos atrás), ou Idade do Gelo, conviveram com os seres humanos serviu também para que o dinamarquês desmontasse sua própria crença no princípio do catastrofismo do naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832). Tratava-se de uma espécie de criacionismo com roupagem científica, no qual, como explica Neves, regiões destruídas por catástrofes no passado foram repovoadas por Deus com seres mais modernos. O homem, nesse caso, surge na última etapa dessas criações, conforme descreve o Gênese.

"Um local onde foi derrubada uma forma de interpretar o criacionismo corre grave risco de ser destruído", lamenta Cartelle.

TESES SOBRE A OCUPAÇÃO

Os crânios escavados por Lund no Sumidouro abriram também caminho para a tese cada vez mais aceita de que os primeiros americanos não descendiam da população asiática, pois sua morfologia craniana se assemelha à dos aborígines australianos e dos africanos atuais.

"Ele logo percebeu que não se tratava de mongolóides típicos, complicando o quadro de ocupação do continente americano", destaca Neves, sobre o tema que retomou investigações no final da década de 80.

Há quatro anos, no bicentenário do nascimento de Lund, o arqueólogo e outros pesquisadores do laboratório da USP realizaram uma nova expedição à gruta do Sumidouro. Neves diz que, a cada visita, volta de lá mais triste, por perceber que as autoridades continuam permitindo o estabelecimento de novas casas dentro do parque. "Será uma vergonha para Minas se o sítio e seu entorno não forem preservados", alertou.

Os cientistas acreditam que uma das formas de conservar o local é propor a elevação dele a Patrimônio Mundial pela Unesco. "É historicamente, filosoficamente, um monumento", diz Cartelle. "Mas não haverá menor clima para fazer essa postulação se o sítio for irreparavelmente comprometido", ressalta Neves.

Mesmo alheio à discussão, Almeida - que nasceu e até hoje mora perto do Sumidouro - também não deixa de se indignar com a "porcariada" do local. Ele lembra da época em que as inscrições rupestres ainda estavam preservadas. Recentemente, testemunhou um barco a motor nas águas ainda límpidas. "Não tem fiscalização. O pessoal vem aqui, acampa, faz churrasquinho no paredão. Tinha de preservar, está acabando tudo", lamenta.