Título: Remédio bloqueia ação do vírus nas células do organismo
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Vida&, p. A26

COMO AGE: Lançado no mercado mundial em 1999, e um ano depois, no Brasil, o antiviral tamivir tem como princípio encarcerar o vírus da gripe na célula. É lá que ele ingressa para se reproduzir e, pouco depois, infectar outras células do organismo. Impedido de sair pela ação do remédio, o vírus é eliminado pelos macrófagos, as células de limpeza e defesa do organismo. Para fazer o efeito desejado, o remédio deve ser tomado assim que os primeiros sintomas se manifestam. Segundo o fabricante, pela sua forma de ação, não há chances de o medicamento produzir resistência. Especialistas, no entanto, não têm tanta certeza disso. Em casos de epidemia, a indicação é de que não só o paciente seja tratado com o medicamento, mas também pessoas que estão próximas dele, justamente para evitar a propagação da doença.

Notícias de que o mundo em breve enfrentará uma epidemia causa por um vírus mutante de gripe começa a provocar efeitos no comportamento dos brasileiros de classe média e alta. Sem querer esperar uma decisão do governo sobre o assunto, muitos já estão montando estoques caseiros do tamivir, o medicamento considerado o mais eficiente para controlar a infecção. Apesar do alto custo da droga - uma caixa não sai por menos de R$ 100, com dez comprimidos e, no exterior há um kit familiar, com 90, que chega a US$ 500 -, o remédio passou a ser procurado nas farmácias de vários pontos do País. De janeiro a setembro, as vendas foram quase 20% superiores ao mesmo período de 2004, segundo a fabricante Roche.

João Carlos Ferreira, diretor do laboratório, não hesita em atribuir o aumento de vendas ao interesse crescente da população em fazer seu próprio plano de contingência. O movimento maior, conta, é registrado em centros como São Paulo. Mas em outras cidades a procura também vem crescendo. Em muitos locais, os consumidores já não encontram o remédio na farmácia. Alguns fazem encomendas para amigos que moram em cidades maiores.

O médico da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) João Tognolo Neto vem há algum tempo recomendando a seus pacientes que façam seus estoques. Ele mesmo providenciou seis caixas do remédio para suas duas filhas, sua namorada, seus pais e, claro, para uso próprio. "Se acabar a validade, compro outra. É uma tranqüilidade que não tem preço", diz.

Antonio Carlos Alves Garcia, outro médico, comprou duas caixas, por R$ 240. "Espero não precisar", diz. Garcia acredita que, em caso de epidemia, o antiviral sumirá das prateleiras, especialmente se o governo não garantir o suprimento. "Esta ameaça não está sendo levada a sério."

"A cada dia, o risco de enfrentarmos uma epidemia com um vírus letal de gripe aumenta. Mesmo que o governo providencie o remédio, não haverá droga para todos", diz Tognolo. É esse, também, o pensamento de algumas empresas.

Ferreira conta que a Roche já fez uma série de contratos para fornecer o tamivir numa eventual epidemia de gripe. No Brasil, o laboratório já fechou contratos com quatro empresas nacionais, com o compromisso de fornecer a droga para 9.600 pessoas, entre funcionários e seus familiares. Outras três companhias - com 20 mil funcionários - negociam.

As primeiras a fazer contratos - que não entram na contabilidade da Roche no Brasil - foram as multinacionais. "Boa parte delas já fez uma plano de contingência, uma estratégia de como substituir viagens, reuniões, no caso de uma epidemia", relata Ferreira. Nessa estratégia, montada também pela própria Roche, há previsão de fornecimento de medicamentos para familiares próximos dos funcionários.

O secretário de Vigilância do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, considera que a corrida às farmácias trará apenas um efeito certeiro: menos dinheiro no bolso dos consumidores. "Não há nada que comprove que o remédio será eficaz numa eventual epidemia. O novo item na farmácia caseira trará apenas uma falsa sensação de segurança."

Barbosa admite ser crescente o risco de uma epidemia provocada por um supervírus de gripe. "Mas não podemos considerar que o antiviral será uma arma infalível para um inimigo que ainda não surgiu." O remédio da Roche tem sua eficácia para casos comuns de gripe. Mas isso não significa que o mesmo ocorrerá com o vírus mutante.

DE HUMANO PARA HUMANO

Especialistas avaliam que o maior risco de pandemia vem do vírus que causa a gripe aviária e já matou 60 pessoas nos últimos anos. Provocada pelo H5N1, a gripe, que surgiu na Ásia, atingiu criações de aves de 11 países. Mais de 100 pessoas contraíram a doença das aves, mas, até agora, o vírus não foi transmitido de humano para humano. "Nenhum estudo foi feito mostrando que o tamivir é eficiente para H5N1", diz Barbosa.

Mesmo dizendo que o remédio não é nenhuma panacéia, o governo brasileiro estuda a possibilidade de fazer um estoque. Detentora da patente, a Roche há tempos cobra que o País defina logo seu pedido de compra. "Há uma fila de países interessados e, por mais que tenhamos aumentado a produção, há um tempo de espera para recebimento. Quanto mais o Brasil demorar para fazer o pedido, mais tempo levará para ser atendido."

Até agora, 40 países já fizeram seus pedidos. Entre eles, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. Este último reviu sua política de emergência e decidiu ampliar a encomenda. Agora, seu estoque está planejado para 50% da população.

A ameaça da longa espera não abala os nervos de Barbosa. "A cada hora a empresa diz uma coisa. Fala que é preciso fazer o pedido, que tem capacidade limitada. Mas se falamos que ela não terá condições de suprir o mercado, ela desconversa." Para ele, o motivo é claro. "Não há dúvida de que a empresa quer garantir o mercado. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para imaginar que ela terá condições de suprir a necessidade mundial num caso de epidemia."

Os números são espetaculares. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a próxima pandemia deve matar, num cenário otimista, 7 milhões de pessoas. Num pessimista, 60 milhões. Serão 2 bilhões de pessoas afetadas pela doença.

Justamente por isso, Barbosa afirma que é preciso criar um plano B, mais ágil e eficiente. Nos próximos dias, na reunião que terá com a indústria, o Brasil deve negociar uma eventual licença voluntária da patente do tamivir. "Seria uma carta na manga, que nos comprometeríamos a usar somente em caso de pandemia."

A própria ONU avisa que poderá recorrer à licença compulsória. O recurso seria extremamente útil para garantir a droga para países pobres.

Ontem, a Romênia confirmou mais um caso de gripe em aves. Na sexta, o país já havia anunciado outros 3 casos. A Turquia também divulgou que 2 mil aves morreram na madrugada de ontem, vítimas da gripe, mas as autoridades sanitárias afirmam que já controlaram o foco da doença.