Título: Medo de pandemia faz brasileiros começarem estoque de antiviral
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Vida&, p. A26

Vendas do principal medicamento cresceram quase 20% e em muitos locais já não é possível encontrá-lo, apesar do preço alto

Notícias de que o mundo em breve enfrentará uma epidemia causa por um vírus mutante de gripe começa a provocar efeitos no comportamento dos brasileiros de classe média e alta. Sem querer esperar uma decisão do governo sobre o assunto, muitos já estão montando estoques caseiros do tamivir, o medicamento considerado o mais eficiente para controlar a infecção. Apesar do alto custo da droga - uma caixa não sai por menos de R$ 100 -, o remédio passou a ser procurado nas farmácias de vários pontos do País. De janeiro a setembro, as vendas foram quase 20% superiores ao mesmo período de 2004, segundo a fabricante Roche.

João Carlos Ferreira, diretor do laboratório, não hesita em atribuir o aumento de vendas ao interesse crescente da população em fazer seu próprio plano de contingência. O movimento maior, conta, é registrado em centros como São Paulo. Mas em outras cidades a procura também vem crescendo. Em muitos locais, os consumidores já não encontram o remédio na farmácia. Alguns fazem encomendas para amigos que moram em cidades maiores.

O médico da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) João Tognolo Neto, vem há algum tempo recomendando a seus pacientes que façam seus estoques. Ele mesmo providenciou seis caixas do remédio para suas duas filhas, sua namorada, seus pais e, claro, para uso próprio. 'Se acabar a validade, compro outra. É uma tranqüilidade que não tem preço', diz.

Antonio Carlos Alves Garcia, outro médico, comprou duas caixas, por R$ 240. 'Espero não precisar', diz. Garcia encontrou o produto com facilidade, mas acredita que, em caso de epidemia, o antiviral sumirá rapidamente das prateleiras, especialmente se o governo não garantir o suprimento.

'Esta ameaça não está sendo levada com a seriedade que pede.' 'A cada dia, o risco de enfrentarmos uma epidemia com um vírus letal de gripe aumenta. Mesmo que o governo providencie o remédio, não haverá droga para todos', diz Tognolo, o outro médico. É esse, também, o pensamento de algumas empresas.

Ferreira conta que a Roche já fez uma série de contratos para fornecer o tamivir numa eventual epidemia de gripe. No Brasil, o laboratório já fechou contratos com quatro empresas nacionais, com o compromisso de fornecer a droga para 9.600 pessoas, entre funcionários e seus familiares.

Outras três companhias - com 20 mil funcionários - estão em processo de negociação. As primeiras a fazer contratos - que não entram na contabilidade da Roche no Brasil - foram as multinacionais.

'Boa parte delas já fez uma plano de contingência, uma estratégia de como substituir viagens, reuniões, no caso de uma epidemia chegar', relata Ferreira. Nessa estratégia, montada também pela própria Roche, há previsão de fornecimento de medicamentos para familiares próximos dos funcionários.v O secretário de Vigilância do Ministério da Saúde, Jarbas Barbosa, considera que a corrida às farmácias trará apenas um efeito certeiro: menos dinheiro no bolso dos consumidores. 'Não há nada que comprove que o remédio será eficaz numa eventual epidemia.

O novo item na farmácia caseira trará apenas uma falsa sensação de segurança.' Barbosa admite ser crescente o risco de uma epidemia provocada por um supervírus de gripe.

'Mas não podemos considerar que o antiviral será uma arma infalível para um inimigo que ainda não surgiu.' O remédio da Roche tem sua eficácia para casos comuns de gripe. Mas isso não significa que o mesmo ocorrerá com o vírus mutante.

DE HUMANO PARA HUMANO

Especialistas avaliam que o maior risco de pandemia vem do vírus que causa a gripe aviária e já matou 60 pessoas nos últimos anos. Provocada pelo H5N1, a gripe, que surgiu na Ásia, atingiu criações de aves de 11 países. Mais de 100 pessoas contraíram diretamente a doença das aves, mas, até agora, o vírus não foi transmitido de humano para humano. 'Nenhum estudo foi feito mostrando que o tamivir é eficiente para H5N1', diz Barbosa.

Mesmo dizendo que o remédio não é nenhuma panacéia, o governo brasileiro estuda a possibilidade de fazer um estoque. Detentora da patente, a Roche há tempos cobra que o País defina logo seu pedido de compra. 'Há uma fila de países interessados e, por mais que tenhamos aumentado a produção, há um tempo de espera para recebimento.

Quanto mais o Brasil demorar para fazer o pedido, mais tempo levará para ser atendido.' Até agora, 40 países já fizeram seus pedidos. Entre eles, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. Este último reviu sua política de emergência e decidiu ampliar a encomenda. Agora, seu estoque está planejado para 50% da população.

Alguns governos têm planos mais modestos e encomendaram um estoque para 1%. A ameaça da longa espera não abala os nervos de Barbosa. 'A cada hora a empresa diz uma coisa. Fala que é preciso fazer o pedido, que tem capacidade limitada. Mas se falamos que ela não terá condições de suprir o mercado, ela desconversa.'

Para ele, o motivo é claro: 'Não há dúvida de que a empresa quer garantir o mercado. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para imaginar que ela terá condições de suprir a necessidade mundial num caso de epidemia.

Os números são espetaculares. A Organização Mundial de Saúde (OMS), órgão das Nações Unidas, estima que a próxima pandemia deve matar, num cenário otimista, 7 milhões de pessoas. Num pessimista, 60 milhões. Serão 2 bilhões de pessoas afetadas pela doença. 'Algo nunca visto em tamanhas proporções', estima o médico Tognolo.

Justamente por isso, Barbosa afirma que é preciso criar um plano B, mais ágil e eficiente. Nos próximos dias, na reunião que terá com a indústria, o Brasil deve negociar uma eventual licença voluntária da patente do tamivir. 'Seria uma carta na manga, que nos comprometeríamos a usar somente em caso de pandemia e de necessidade.'

A própria ONU avisa que poderá recorrer à licença compulsória. O recurso seria extremamente útil para garantir a droga para países pobres. ? Colaborou: Cristina Amorim