Título: D. Luís iria mesmo até o fim; garantem amigos
Autor: Angela Lacerda
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Nacional, p. A18

Quem conhece o franciscano d. Luís Flávio Cappio de perto, como seus amigos de escola e seus confrades de convento, não tinha a menor dúvida de que, se o governo não cedesse, ele levaria a greve de fome até a morte pela salvação do Rio São Francisco. Duas horas antes do anúncio do acordo com o ministro das Relações Institucionais, Jaques Wagner, na quinta-feira, João Franco, o Nine, irmão do bispo que estava com ele em Cabrobó, telefonou para os filhos em Guaratinguetá e avisou: "Só há duas maneiras de seu tio sair daqui: em procissão com o povo ou deitado num caixão."

Os cinco sobrinhos do bispo acharam que não havia outra saída, pois a última notícia confirmava o impasse. "Não é questão de achar, é questão de a gente conhecer bem o tio e saber da convicção dele, um homem de coragem, para chegar às últimas conseqüências", disse Luiz Flávio, xará do tio-bispo.

"Aquela cabeça eu conheço bem, é um sujeito determinado que renunciou à vida dele por aquela gente, o povo ribeirinho do rio", reforçou o engenheiro Waldomiro Rizzato, amigo de infância e adolescência do bispo, até ele se refugiar no Seminário Frei Galvão, um internato franciscano em Guaratinguetá. Não era o que pretendia o pai, Luiz Cappio, gerente de uma fábrica de tecidos, homem de posses e de prestígio na cidade.

Como o rapaz insistiu em ser padre, o pai culpou o jardineiro da casa, Bernardo Ribeiro da Silva, que tinha feito uma cruz na testa quando o menino nasceu, dizendo que ali estava um servo de Deus. O relato é do comerciante Hélio Maia Filho, genro do jardineiro e colega de escola do futuro bispo. "A gente freqüentava as aulas de catecismo no Orfanato Puríssimo Coração de Maria, jogava no Clube de Regatas Guaratinguetá e nadava junto no caixão (piscina natural) do (rio) Paraíba".

Foi nos mergulhos juvenis que Luís Flávio, o homem que faria 11 dias de greve de fome contra o projeto de transposição do São Francisco, começou a se interessar por água de rio. "Ele entende disso porque bem na frente da casa dele fizeram uma obra de transposição do Paraíba, projeto que endireitou o trajeto do rio, mas também acabou com o leito e matou os peixes", observou Maia.

DESPRENDIMENTO

Frei Walter Hugo de Almeida, colega de noviciado e estudos, elogiou seu desprendimento - um franciscano santo e fraterno que abria mão de tudo para ajudar as pessoas, sobretudo os pobres. No Instituto de Filosofia e Teologia de Petrópolis, onde os dois foram alunos de Leonardo Boff, frei Cappio tinha atitudes generosas: "Se ganhava um par de sapatos ou uma camisa nova, dava para quem precisasse." Uma vez, levou para uma família de um morro de Petrópolis um colchão que achou num depósito do convento.

Depois de ordenado padre, em 1971, frei Cappio trabalhou na Pastoral Operária em São Paulo. "Vivia em pobreza completa, não usava dinheiro, dependia de esmolas e comia o que lhe davam", disse o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo da arquidiocese. Um dia, o frade sumiu, deixando documentos e alguns trocados na casa paroquial. "Foi embora descalço, vestindo o hábito franciscano, como nosso pai, São Francisco", recorda o cardeal. Foi d. Paulo quem ordenou frei Luís Flávio sacerdote e, mais tarde, bispo, em julho de 1997.

Quando foi para o sertão da Bahia, não acreditaram que ele era padre. "O bispo até ligou para o superior provincial dos franciscanos, pedindo confirmação", revela frei Walter, o ex-colega de seminário. Na diocese de Barra, frei Cappio vivia no meio do povo. Em 1993 e 1994, tirou um ano para percorrer as margens do rio. "Viajava a pé, de canoa ou a cavalo, comendo o que davam para ele", contou o poeta e compositor Roberto Malvezzi, o Gogó, militante da Pastoral da Terra.

O estilo foi sempre o mesmo. "Gosta de usar roupa velha, calça e camisa surradas, os pés descalços", conta a secretária Sofia de Oliveira Cavalcanti, que trabalha na diocese desde o tempo de d. Itamar Vian, antecessor de d. Cappio em Barra. "A nomeação foi uma surpresa, pois ninguém esperava, nem ele mesmo", diz o padre José Oscar Beozzo, teólogo e estudioso da história da Igreja.

DO POVO

"O Espírito Santo acertou na escolha, esse vai ser um bispo do povo", comentou frei Walter, ao saber da notícia. Mandou uma mensagem prometendo orações e foi convidado para padrinho na ordenação episcopal. A cerimônia foi realizada na igreja de Nossa Senhora da Glória, no bairro de Pedregulho, onde a família Cappio sempre morou, em Guaratinguetá. Ligado à família, d. Cappio volta à cidade pelo menos uma vez por ano.

"Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho", escreveu d. Cappio no pé da carta que enviou ao presidente Lula para anunciar a greve de fome contra a transposição do São Francisco. A carta terminava com um pedido: "Caso venha a falecer, gostaria que meus restos mortais descansassem junto ao Bom Jesus dos Navegantes, meu eterno irmão e amigo, a quem doei toda a minha vida em Barra, minha querida diocese." Era um testamento.