Título: A doce vida de quem não precisa temer a lei
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Nacional, p. A8

A legislação eleitoral deixa portas livres para políticos escaparem do castigo

Pouco depois das eleições de 2002, o Tribunal Regional Eleitoral paulista rejeitou as contas do candidato a governador pelo PT, José Genoino, por falta de vários comprovantes de despesas. Ele chegou a apresentar alguns papéis - que foram de novo rejeitados - mas, ao saber que o problema não lhe traria nenhuma punição, simplesmente abandonou o assunto. "Ele sequer recorreu ao TSE. Deixou como estava", constatou na ocasião, um tanto surpreso, o presidente do TRE paulista, Alvaro Lazzarini. A atitude do candidato, mais que o ilícito, em si, é um espelho fiel das largas facilidades de que desfruta o mundo político no Estado brasileiro: a punição é rara, quase inalcançável, e quando aparece é suave. Não há um único artigo, entre os 107 da lei 9.504 (que trata de todo o processo eleitoral), ou entre os 63 da lei 9.096 (que disciplina a vida dos partidos) capaz de meter medo em políticos que fazem caixa 2, pratiquem outras fraudes ou renunciem ao mandato para escapar à cassação. Quando muito, há punições para os partidos - a principal delas é o corte na entrega do fundo partidário. Mas na prática, até hoje, ela não atrapalhou a vida de ninguém. Assim, não só Genoino como milhares de outros candidatos , vitoriosos ou derrotados, envolvidos em mensalões e mensalinhos, dólares no Caribe ou na cueca, poderão concorrer normalmente a um cargo em 2006. É o que certamente farão os deputados Valdemar Costa Neto (PL-SP) e Carlos Rodrigues (PL-RJ). A mesma saída sugerida até pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, há três dias, aos seis petistas envolvidos nas mesmas denúncias.

"O fato é que a lei obriga o juiz a ser idiota, pois ele só pode julgar o que está nos autos e o que está nos autos não é o que está no mundo", desabafa Álvaro Lazzarini. Nos autos, a justiça eleitoral não deve se ocupar mais de quem renunciou. Não pode impugnar uma candidatura depois do 15.º dia de seu lançamento. Nada pode fazer contra um político enrolado em mil processado antes que eles cheguem ao fim - o que só acontece depois de embargos e recursos intermináveis.

Os tribunais bem que tentam arrumar a casa, mas a batalha é desigual. Em 1998, num grande esforço, das 1.685 contas prestadas o TRE paulista desaprovou 674 - uma gorda fatia de 40% do total. Dos 645 prefeitos eleitos em 2004 no Estado de São Paulo, ele já cassou 19. Na mesma eleição de 2004, ele montou equipes para ir a almoços e eventos em que candidatos captam recursos para campanhas e descobriu muita coisa interessante. Além disso, a justiça eleitoral tem trabalhado junto com a Receita Federal, cruzando dados de candidatos, fornecedores, doadores - e o espaço para ilícitos vai se encurtando. Mas o transgressor está sempre um passo à frente.

Estudioso de assuntos eleitorais, o advogado Ricardo Penteado, do escritório Malheiros, Penteado e Toledo, admite que há buracos na lei, mas está otimista: "Essa crise toda é uma febre, o acordar do sistema democrático", diz ele. "Vejo nisso um grande passo. A sociedade está ficando mais ética. Estamos desmistificando falsos moralistas."

A finalidade da lei eleitoral, adverte ele, é cuidar de eleições, "e não punir ilícitos que estão fora de seu universo de preocupações". Ele defende, por exemplo, o prazo limite de 15 dias para impugnações. "Se não houver um prazo limite, o processo eleitoral não acaba nunca e ninguém governa.".

Penteado acha que as falhas podem ser corrigidas. Não é tão difícil mudar, por exemplo, a lei que estabelece limites de doação para o candidato mas deixa livres as doações para os partidos. Como está, basta alguém dar o dinheiro ao partido, que o repassa ao candidato. Outra idéia a ser experimentada, sugere o advogado, é fixar um limite máximo, igual, para os gastos de campanha dos partidos - em especial as candidaturas majoritárias. "Com isso, conseguiremos que os candidatos se fiscalizem uns aos outros", observa.

Outro especialista, o advogado Everson Tobaruela, do Comitê de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados (OAB) paulista, acha que é preciso cobrar mais eficácia do Tribunal Superior Eleitoral. "A justiça eleitoral devia ser implacável no uso dos instrumentos existentes", diz ele. Ela poderia requisitar contadores e economistas para analisar com rapidez as contas de políticos e partidos. Poderia, também, promover ações competentes para punir culpados, requisitando documentos às CPIs. "Num prazo de 70 dias, com direito de defesa e tudo, seria possível chegar a uma sentença", diz ele.

1.685

prestações de contas foram

apresentadas nas eleições de

1998 em São Paulo

674

foram desaprovadas

1.011

foram aprovadas apenas sob

o aspecto formal

40%

foi o total de contas reprovadas

em 1998 pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo