Título: Visões do paraíso, versão 2006
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

"O que é escrito ou falado uma única vez permanece rigorosamente inédito", afirmava Nelson Rodrigues, justificando seu constante retorno a certos temas. O presidente Lula parece ter incorporado a letra e o espírito do argumento: "Nenhuma música e nenhum filme teriam sucesso se não fossem repetidos muitas vezes nos rádios e nos cinemas." Deixando de lado dúvidas sobre a relação de causalidade, o fato é que o presidente parece "cada vez mais convencido" não só da excelência de seu governo, como também de que todos deveriam entender que ele não pode "consertar erros de 500 anos em apenas quatro anos de governo". É óbvio que tampouco em oito anos. Mas, de fato, é da reeleição que se trata. Um dos bordões da campanha pela reeleição de Ronald Reagan, em 1984, era a frase: "Você ainda não viu nada." Um dos refrões da campanha de Perón nos anos 50 era a frase: "Perón fez - e fará cada vez mais." Com Duda ou sem Duda, será mais ou menos por aí o que vamos ver em 2006.

No plano político mais imediato, a estratégia da reeleição é clara: tentar fazer com que os eventos que desde maio ocupam a mídia, com intensidade nunca dantes vista, não mais apareçam com visibilidade em 2006. O desejo de que o presente vire rapidamente um passado meio esquecido já está implícito na declaração desta semana: "... o denuncismo ficou solto por 4 ou 5 meses", mas "os deputados estão em dificuldades para apurar, as denúncias aparecem e não têm concretude, fica o dito pelo não dito e não existem pedidos de desculpas, reparação e retratação." Em resumo, o governo e o PT estão "cada vez mais convencidos de sua inocência".

O fato é que, ao longo dos próximos 12 meses, o Brasil estará decidindo o restante desta década. Nessa travessia há três grandes testes implícitos nos aguardando. Todos têm que ver com os eternos discursos sobre esperanças, promessas, sonhos e desejos de mudança.

O primeiro teste será sobre o grau de maturidade político-institucional que pensamos haver alcançado, tal como refletido na forma e no conteúdo da retórica dos candidatos. Em outras palavras, se é verdade que avançamos nessa direção, deveríamos ser capazes, como sociedade, de reduzir o espaço para os discursos messiânicos e salvacionistas, para as expressões de voluntarismos variados e promessas populistas. Todos esses tipos de discurso ainda habitam nosso imaginário político. Mas este também abriga formas menos irresponsáveis de procurar manter viva a chama de uma refletida esperança em dias melhores que não sejam meras expressões de vagos desejos, anunciados com propósitos puramente eleitorais.

Apenas um exemplo: a competente e insuspeita Teresa Cruvinel se referiu, em sua coluna de 30/6/2004, "ao festival anual de demagogia sobre o salário mínimo, que teve, no passado, o PT na liderança". O espaço é curto para outros exemplos do tipo. Mas vale lembrar a observação recente de Roberto DaMatta: "... na raiz desta crise jaz o abalo da crença de que existem pessoas, partidos e ideologias capazes de mudar magicamente o Brasil". A retórica política versão 2006 indicará quão abalada foi a crença.

O segundo teste também será decisivo para o nosso futuro e tem que ver com o grau de racionalidade do debate econômico, em particular em torno do tema que é hoje uma unanimidade nacional: o desejo de alcançar um crescimento sustentável a taxas mais elevadas que a média dos últimos 25 anos. A discussão relevante é sobre a relação desse objetivo, por um lado, com a política macroeconômica e, por outro, com fatores, políticas e ações em outras áreas, não macro, que podem ser tão ou mais importantes para o crescimento sustentado da atividade econômica, do investimento e do emprego.

Na política macroeconômica, é a combinação dos compromissos de preservação da inflação sob controle e de realização do esforço fiscal necessário para reduzir a relação dívida/produto que permitirá a redução significativa dos hoje insustentavelmente altos juros reais. Que poderá ser tão menos gradual quanto maior for a credibilidade do compromisso de governos, e o respaldo que tenham na sociedade, com as responsabilidades fiscal, monetária e cambial.

Vale lembrar, contudo, invocando o velho Nelson, que o desempenho recente da economia brasileira se deve a três conjuntos de fatores: um contexto internacional extraordinariamente favorável (expansão de produto, comércio e liquidez não vistos há 30 anos), uma postura responsável na condução da política macroeconômica e, por último, mas não menos importante, avanços institucionais e regulatórios, bem como mudanças estruturais e microeconômicas alcançadas pela economia e pela sociedade na vigência desta e de administrações anteriores. São estes mesmos três conjuntos de fatores, a qualidade do debate em torno deles e avanços adicionais que continuarão definindo as nossas perspectivas em 2006 - e adiante.

O terceiro teste a que nos estaremos submetendo nos próximos 12 meses diz respeito à nossa capacidade de olhar para o futuro, além de 2006. Analisar o passado é sempre fundamental, mas para aprender com os erros e os acertos e entender as complexidades por outros enfrentadas. Afinal, houve uma época em que eventos hoje em conhecido passado ainda estavam em incerto futuro. Isso deveria servir de antídoto a arrogâncias variadas e críticas fáceis. Além do mais, o passado recente deveria levar ao abandono definitivo das tentativas retóricas de apropriação indébita das bandeiras da ética, da esperança e da mudança.

Juscelino Kubitschek, sempre tão reverenciado em momentos como este, propôs tentar fazer o Brasil avançar 50 anos nos 5 anos de seu mandato. Ele estava, como sempre, olhando à frente. Não se lamentando pelos erros cometidos nos anteriores 455 anos "da História deste país", nem adjetivando heranças, tampouco se esquecendo de que ele mesmo deixaria ao sucessor sua própria herança, em termos de fatos objetivos, e não de uma midiática retórica sobre a grandeza de suas boas intenções - e de suas visões do paraíso.