Título: Chantagem emocional
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/10/2005, Notas e Informações, p. A3

Se greve é uma pressão com base em ameaça de prejuízo, a ser causado a alguém, de quem se reivindica algo - regra geral no campo trabalhista -, a chamada "greve de fome", um jejum que o "grevista" impõe a si mesmo, não passa de um apelo puramente emocional, levado ao paroxismo. Com ela se tenta obter algo ameaçando a própria vida - e, no limite, essa "chantagem emocional" pretende responsabilizar terceiros pelo eventual suicídio do reivindicante. Pode-se entender esse tipo de "greve" como um ato de desespero de pessoas - em geral encarceradas - que se vêem totalmente destituídas de seus mínimos direitos humanos. É difícil entendê-lo, no entanto, como fator dissuasório de medidas de um governo democrático, por mais polêmicas que estas sejam - como é o caso da transposição do Rio São Francisco, combatida pelo bispo Luís Flávio Cappio, da Diocese de Barra (BA). Não cabe neste comentário abordar todo o complexo problema da transposição, estudado e discutido desde os tempos do Império, e que sempre suscitou opiniões técnicas - e políticas - as mais divergentes. Há contestações quanto à possibilidade de essa obra de altíssimo custo - estimada em R$ 4,5 bilhões -, que consiste na construção de 720 km de canais para levar a água do Rio São Francisco a áreas secas de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, beneficiar, efetivamente, na melhor das hipóteses, cerca de 12 milhões de pessoas como é a proposta oficial.

Entre os argumentos favoráveis e os contrários à obra - que, certamente, foi abraçada pelo governo Lula como um de seus maiores trunfos eleitorais -, preocupa-nos, sobretudo, desviar-se as águas de um rio já bastante deteriorado, sem antes submetê-lo a um aprofundado e extenso processo de revitalização.

Aliás, é essa revitalização que é reivindicada pelos que militam contra o projeto, entre os quais se inclui o bispo Cappio, por considerá-la uma condição prévia indispensável.

Como era de se esperar, o apelo emocional do bispo, já chamado de "anjo do Rio São Francisco" - um anjo com tendência ao pecado do suicídio, convenhamos -, desencadeou numerosas manifestações populares, envolvendo movimentos sociais e religiosos. É claro que em se tratando de regiões pobres do Nordeste, em cuja história já pontificaram fortes lideranças espirituais do tipo Antonio Conselheiro ou Padre Cícero, toda uma mobilização pode levar muitos ao exagero de vislumbrar um "novo Canudos" - coisa que, a esta altura de nossa evolução política, parece sem pé nem cabeça. Mas a pressão sobre o governo Lula, para que este trave algum tipo de "negociação" com o religioso jejuador - ou suspenda o início da obra de transposição, para promover mais estudos e diálogos em torno do assunto - , já produz seus efeitos: o ministro Jaques Wagner, que é o coordenador político do governo e considera "prioridade zero" fazer com que o bispo desista da greve de fome, já viajou ao encontro do religioso, buscando a negociação.

Lula foi muito criticado, tanto por parlamentares oposicionistas quanto governistas, quando disse que, se todos os contrariados por decisões governamentais fizessem greve de fome, seria "muito complicado". Justiça se lhe faça, aí o presidente da República se utilizou - sem o saber, é claro - do famoso "imperativo categórico" kantiano, que define o comportamento ético como o que pode ser generalizado, sem impossibilitar a convivência entre as pessoas.

Certamente, se o bispo Cappio tem esse direito, todos também poderiam agir dessa forma para pressionar os governos a agir desta ou daquela maneira. Isso não seria, de fato, "muito complicado"?

Mobilizações, apelos emocionais e demagogias à parte, é óbvio que nenhum governo pode tomar decisões - bem ou mal fundamentadas sob o ponto de vista técnico-científico, tenham ou não o necessário respaldo político - em bases puramente emocionais, como seria se adiasse o início das obras de transposição do Rio São Francisco, depois de expedida a necessária autorização do Ibama, por causa de uma greve de fome.

Se o governo está convencido de que o projeto é o melhor para o País, não tem o direito de atrasar sua execução por temor das conseqüências eleitorais de um desfecho trágico desse episódio.

É pagar para ver e esperar que - desta vez, para o bem de todos - tudo termine em pizza.