Título: O lado sombrio dos canaviais
Autor: Agnaldo Brito
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/10/2005, Economia & Negócios, p. B12

Mortes inexplicadas atraem o foco para as condições em que trabalham cerca de 40 mil migrantes em São Paulo

Ainda é madrugada em Guariba, região de Ribeirão Preto, coração da principal zona canavieira paulista. O sol ainda não despontou e Arlindo Magalhães é o primeiro bóia-fria a chegar ao ponto central do Bairro Alto, vila de gente pobre que só faz crescer. Magalhães vai enfrentar jornada de 10 horas de trabalho. Mochila e garrafa térmica ao lado, esse nordestino forte encontra ânimo para uma rápida prosa, antes de embarcar em um ônibus para sabe-se lá que destino. Um canavial, é certo. Magalhães é o retrato de um novo personagem nos canaviais paulistas, cultura que prospera sobre os ombros de mineiros, baianos, pernambucanos, paraibanos e, mais recentemente, maranhenses.

O nosso personagem chegou em abril de Timbira (MA). Veio atrás de trabalho, o que faz religiosamente desde de que pisou em Guariba, num ritmo de cinco dias por um de descanso. Magalhães é um dos 40 mil migrantes que ceifam as 37,95 milhões de toneladas de cana-de-açúcar na macrorregião de Ribeirão Preto e que recebem agora atenção especial do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) de São Paulo.

Não por acaso. Recentemente, houve mortes. Das 10 registradas desde o ano passado, 9 tiveram causas desconhecidas. Agora, investigações tentam lançar luz sobre as condições de saúde e trabalho desses homens e mulheres, um universo até agora ignorado.

"O que deixa todos muitos intrigados é que em todos os casos a causa das mortes é parada cardiorrespiratória. É preciso saber o que ocorreu com essas pessoas", afirma o padre Antonio Garcia Peres, assessor da Pastoral do Migrante de Guariba, organização da Igreja Católica brasileira existente há 22 anos. "A idade desta pastoral é a mesma do Proálcool", brinca Padre Peres.

A exploração da mão-de-obra migrante na região data do início do ciclo econômico do álcool combustível e jamais abrandou. A periferia de Guariba (ou 60% da população) é formada por migrantes. O fluxo de gente é constante: mão-de-obra abundante e barata, arregimentada por aliciadores, ou "gatos". As condições de trabalho evoluem em ritmo lento, bem aquém das expectativas do agronegócio sucroalcooleiro, cujo futuro promete expansões capazes de dar ao Brasil posição geopolítica relevante no mundo.

O Brasil ganha relevância mundial como fornecedor de álcool combustível, o que deve dar ao País um mercado entre 2,3 bilhões a 2,5 bilhões de litros exportados este ano. No front agrícola, onde tudo começa, o cenário é bem menos nobre.

"É o outro lado do agronegócio sucroalcooleiro. Um lado que não vemos", diz Maria Aparecida de Moraes Silva, professora e doutora em Sociologia, que há 30 anos se dedica ao estudo da relação capital/trabalho no setor canavieiro. É autora do livro Antes do Fim do Século, publicado pela Editora Unesp, instituição na qual ainda leciona.

Os canaviais paulistas devem crescer dos atuais 3,3 milhões de hectares para 4,3 milhões de hectares em 4 ou 5 anos. As perspectivas mundiais do álcool combustível se ampliam e arrastam uma estrutura produtiva e de trabalho tocada basicamente por músculos. Há muitas destas glebas que dependem da força humana. A mecanização é inferior a 30%.

Seis meses depois de iniciar a jornada, Magalhães não esconde o cansaço. "Não penso nisso, não. Tenho economizado um dinheiro, ainda que seja obrigado a reduzir os gastos com um passeio, com uma carne", diz.

Amadeu Félix Miranda, 38 anos, outro migrante de Timbira, narra suas desventuras. Não nega o cansaço. Mas pelos R$ 500 de renda mensal já se considera satisfeito. Consegue poupar R$ 200, que farão dele um sujeito endinheirado quando voltar à terra natal. O problema é exatamente este. De onde eles vêm, é só desolação, falta de perspectiva. O futuro pode não ser promissor aqui, mas R$ 100, R$ 200 ou R$ 300 por mês fazem grande diferença nos embalos do fluxo migratório. "Olha, tenho disposição de voltar no ano que vem. Acho que vou trazer o meu irmão também", diz Miranda.

É como a vida de Francisco Rodrigues de Araújo, maranhense de Codó. Depois de duas safras, trouxe a família. Hoje, mora numa casa simples do Bairro Alto. Corta 12 toneladas de cana por dia. Conhecia um dos conterrâneos que morreu num canavial. "Era da minha turma. Falava de uma dor de cabeça que não passava. Morreu. Olha, companheiro, assustei", confessa. Lembra vez ou outra do companheiro, mas pensa mesmo é nas 12 toneladas que o aguardam numa gleba qualquer. E a madrugada se foi. Amanheceu.