Título: Laboratório teme saques de antiviral
Autor: Jamil Chade
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/10/2005, Vida&, p. A12

Roche não revela onde produz e estoca seu remédio contra gripe; medo é de um ataque da população e da pressão de governos

300% é o quanto aumentou a venda do Tamiflu entre julho de 2004 e julho deste ano

700

mil pessoas podem ser tratadas com a quantidade de remédio guardada em um dos armazéns da Roche

12

meses é o tempo que o Brasil teria de esperar para receber o remédio caso fizesse uma encomenda hoje

2016

ano até o qual a Roche deterá a patente do medicamento, e que pode ser questionada

A empresa que produz e tem a patente sobre o único remédio antiviral que pode ter o potencial de proteger o mundo contra uma pandemia de gripe, a suíça Roche, teme a invasão de suas fábricas pela população e a pressão de governos, caso a doença se espalhe pelo mundo. A Roche, que fabrica o Tamiflu (tamivir), prepara um plano de segurança para seus estoques.

Na cidade da Basiléia, o Estado teve acesso a um dos locais de estoque do Tamiflu, produto lançado no mercado em 1999 e que hoje é considerado dentro da empresa como um remédio com fortes "ingredientes políticos".

Os responsáveis pela produção da Roche contam que o remédio foi colocado no mercado como um mero produto contra a gripe. Mas, desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) saiu de sua neutralidade em relação às empresas farmacêuticas e indicou o Tamiflu como o que melhor atenderia à situação, a procura por ele está sendo um desafio para a empresa.

O produto, apesar de sua sofisticação, tem como base uma planta que só é encontrada em quatro províncias da China e colhida entre os meses de março e maio de cada ano. Trata-se do anise, que depois de seco passa por um processo químico até se transformar em um ácido. Hoje, a Roche já isso de forma sintética, dispensando em parte as sementes. Mesmo assim, toda a produção do país está sendo comprada pela empresa.

Seja qual for a base da produção, a Roche garante que não tem hoje capacidade de produzir uma quantidade suficiente de remédio para toda a população mundial que estaria vulnerável a uma pandemia. Técnicos revelam que, entre 2003 e 2006, a empresa já terá expandido a produção do Tamiflu em oito vezes, sem revelar, porém, qual o volume dessa produção. O único dado público é o que está nos balanços da empresa, que mostra que as vendas cresceram mais de 300% entre julho de 2004 e julho deste ano.

Estocados em locais protegidos e bastante vigiados, cada barril com o remédio contem um volume suficiente para tratar 7 mil pessoas. Em apenas um dos armazéns da empresa, os barris empilhados seriam suficientes para atender 700 mil pessoas. Mas nem todos os locais de estocagem são divulgados pela Roche.

A empresa teme que, divulgando esses locais, as populações das regiões próximas aos armazéns tentem invadi-los. O medo também é de que ocorra uma invasão das fábricas, mesmo que não sejam os locais de produção do Tamiflu. "Isso seria terrível, pois interromperia a produção de outros remédios também considerados essenciais", disse um técnico.

A empresa não descarta que governos ordenem um cerco às fábricas para não deixar a companhia enviar os medicamentos a outras partes do mundo enquanto o abastecimento local não for atendido. "Temos um plano especial de segurança, caso uma pandemia apareça", explicou Armin Knoblich, responsável pela rede de suprimentos do Tamiflu. Para Knoblich, um dos temas mais delicados em caso de uma pandemia será a escolha que os governos terão de fazer sobre quem receberá primeiro as levas de remédios.

PRODUÇÃO SECRETA

No total, seriam mais de seis plantas de produção espalhadas na Europa e América do Norte, onde a fabricação já estaria ocorrendo. Mais uma vez, o sigilo prevalece. A único local conhecido é o da Basiléia, na Suíça, e a poucos quilômetros da fronteira com a Alemanha. A empresa se recusa a dizer até mesmo quais são todos os países que já adquiriram o remédio, apesar de garantir que os tanques com o produto saem todos os dias das fábricas em direção a um país diferente.

Exatamente por não contar com o remédio em quantidades suficientes, a Roche sugere aos governos que façam suas encomendas dos produtos assim que possível. "O Brasil, que até agora não fez seu pedido, teria de esperar até 12 meses para receber uma primeira leva especial de Tamiflu, caso compre o remédio hoje da Roche", afirmou Knoblich.

O secretário de Vigilância do Ministério da Saúde brasileiro, Jarbas Barbosa, comentou na sexta-feira essa pressão. "A cada hora a empresa diz uma coisa. Fala que é preciso fazer o pedido, que tem capacidade limitada. Mas se falamos que ela não terá condições de suprir o mercado, ela desconversa." Para ele, o motivo é claro: "Não há dúvida de que a Roche quer garantir o mercado. Mas ninguém é ingênuo o suficiente para imaginar que ela terá condições de suprir a necessidade mundial numa epidemia."

MERCADO NEGRO

A Roche admite que, em caso de pandemia, um mercado negro de Tamiflu deverá surgir. "O produto poderá valer ouro", diz um funcionário. A realidade é que, caso a doença se espalhe, essa será a primeira vez na história que o mundo poderá ter um remédio com alguma chance de combater o mal.

Exatamente por isso, começa um debate sobre a validade da patente do Tamiflu, da Roche até 2016. A empresa insiste que os genéricos não seriam uma solução e cita a companhia indiana Cipla, que teria dito que levaria de dois a três anos para fazer uma primeira leva de genérico do Tamiflu. A Roche fez ainda algumas concessões, como aceitar entregar aos governos apenas os ingredientes, e não as cápsulas do remédio, o que reduz o preço pela metade. "Não podemos proteger o mundo, esse é um trabalho dos governos. Se fizermos isso, vamos à falência", disse Knoblich. A ONU anunciou na semana passada que, em caso de uma eventual pandemia, o debate sobre patentes será um obstáculo.