Título: Canção para Lula acordar
Autor: Aloisio de Toledo César
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/10/2005, Espaço Aberto, p. A2

Com sua invejável sensibilidade, Carlos Drummond de Andrade confessava estar em busca de uma canção que fosse capaz de despertar os homens e adormecer as crianças. Puxa vida, nestes dias em que estamos todos perdendo o sono, pela turbulência verificada nas instituições políticas, é inacreditável que algumas pessoas - exatamente as que deveriam estar acordadas - permaneçam meio adormecidas.

Seria necessário, assim, não tanto uma canção, como dizia Drummond, mas, quem sabe, um apito, uma sirene, a buzina de um carro, enfim, alguma coisa que faça o presidente Lula despertar de seu torpor e se dignar a olhar, nem que seja uma única vez, para o Judiciário e para os milhares de brasileiros que aguardam as decisões dos juízes.

Os processos carentes de decisão, tomados unicamente os de São Paulo, se fossem colocados em fila, seriam capazes de chegar até Brasília, com folga ainda para desenhar a figura de um oito em torno do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, enfim, o tripé da República.

O que o presidente Lula tem que ver com isso? Ele próprio talvez se pergunte, tal a singeleza de seu comportamento, mas acontece que sem a sua participação e seu empenho pessoais o Congresso Nacional jamais aprovará as leis de que nós, juízes, necessitamos para limpar as prateleiras.

A maioria dos brasileiros imagina que as prateleiras dos Fóruns estão abarrotadas de processos porque os juízes não trabalham ou porque são em número insuficiente. Em nenhuma parte do planeta existirá um volume de trabalho tão extenuante como o que é imposto aos juízes de São Paulo e de Brasília.

Neste Estado existe o maior tribunal do mundo, o Tribunal de Justiça, com 332 desembargadores, e mesmo assim o gargalo de entrada de processos, tal como numa caixa d'água, continua sendo maior que o de saída. As pilhas continuam crescendo assustadoramente.

Todos sabemos: o resultado de uma justiça tardia, muitas vezes quase inútil, é a descrença crescente nas instituições, em face do sentimento de impunidade e de que não adianta recorrer ao Judiciário.

Sucede que as decisões judiciais estão subordinadas a um sistema processual inadequado, ultrapassado, que impede solução rápida para os litígios. Sem leis novas, de competência privativa do Congresso Nacional - e aqui é comprometedora a indiferença do chefe da Nação -, não há como tornar a Justiça ágil como desejamos nós, os juízes.

No início de seu governo, Lula fustigou a magistratura e deu a entender que os juízes não trabalhavam o suficiente. Anunciou, então, a disposição de realizar uma reforma no Judiciário.

Com esse propósito, influiu no Congresso e aprovou a Emenda Constitucional nº 45, a qual, por incrível ironia, garantiu aos jurisdicionados - pessoas que litigam nos processos - o reconhecimento do direito à celeridade na sua tramitação: "A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração dos processos e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" (nova redação do artigo 5º, LXXVIII, da Constituição federal).

Mas faltou, por ululante contradição, fazer o principal, ou seja, dar aos juízes os instrumentos necessários para tocar esses processos com rapidez e, assim, esvaziar as prateleiras dos tribunais. Sem leis que permitam tornar céleres os processos, o direito à celeridade, conferido pela emenda constitucional, se torna letra morta, verdadeiro atestado de algo incompleto ou ainda por fazer.

O presidente Lula tem pela frente apenas 15 meses de governo e não é possível que não deseje uma Justiça melhor e mais rápida para os que a ela recorrem. Os brasileiros em geral, e os políticos, em particular, já aprenderam que não se deve subestimá-lo. Sua astúcia e sagacidade são invejáveis e o conduziram a uma carreira admirável e sem precedentes. Mas, talvez por ser um autodidata, prisioneiro de infância e juventude sofridas, além de carente de melhor formação cultural, é possível que acredite já haver completado a "reforma do Judiciário".

Até agora não houve reforma alguma, ou seja, o que foi feito não resultou na redução de um único dia na tramitação dos processos.

Mas, hoje, tendo um aliado e ex-ministro na presidência da Câmara dos Deputados, o chefe da Nação poderá influir positivamente na aprovação das leis necessárias a pelo menos limitar os recursos judiciais protelatórios, verdadeira camisa-de-força que bloqueia a magistratura.

Se não fizer isso, persistirá o panorama de desgaste das instituições nacionais, sobretudo do Judiciário. Este Poder sempre foi e sempre será um obstáculo ao autoritarismo e à truculência institucional, daí por que a sua desmoralização progressiva atende aos interesses de todos aqueles que sonham com um Brasil totalitário, a exemplo de Cuba e China.

Assim como o partido político hoje no poder estimula, "com a mão do gato", as invasões de terras e busca com isso enfraquecer o direito de propriedade, passo inicial para sua futura extinção, é perfeitamente compreensível que a desmoralização do Judiciário se preste a sonhos de perpetuação de um grupo sem escrúpulos que já mostrou o que é capaz de fazer.

O desejado engajamento de Lula na luta por leis processuais sadias poderá levá-lo a recorrer ao Conselho Nacional de Justiça, órgão por ele criado.

Dias atrás, esse conselho lançou a proibição pública de nomeação de parentes de juízes para cargos sem concurso, obstáculo ao nepotismo. Isso o Tribunal de Justiça de São Paulo já fizera fazia muito tempo, por intermédio de lei, mas é forçoso reconhecer que a iniciativa revela boa disposição e a tendência a contribuir para a melhora do Judiciário. Tomara que assim seja.