Título: Realidade paralela
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/10/2005, Nacional, p. A6

Lula e PT continuam a apresentar os fatos na versão que mais lhes interessa Um espectador menos atento do cotidiano da crise ontem teria tudo para duvidar daquilo que seus olhos e ouvidos registraram nos últimos meses.

De acordo com três fontes de análise, informação e interpretação - o presidente da Repúlica, o ministro da Justiça e a direção do PT -, nada houve nesse período de desabonador para o governo ou para o partido oficial , a não ser algumas aleivosias assacadas aqui e ali por adversários políticos imbuídos de má-fé.

Luiz Inácio da Silva falou em "denúncias" que assolam o País como se não dissessem respeito a coisa alguma ou a ninguém em particular; Márcio Thomaz Bastos condenou a "complacência geral" com o uso de dinheiro de caixa 2 como se o próprio presidente não tivesse externado essa tolerância naquela entrevista em Paris; o PT negou que seus dirigentes tenham alguma vez ouvido falar em caixa 2 dentro do partido, como se o "dinheiro não contabilizado" não fosse o argumento central de defesa para explicar a dinheirama do chamado valerioduto.

Vai se formando a impressão de que, sentindo-se fortalecido pela vitória na Câmara, o governo começa também a deixar de lado o constrangimento e volta a adotar a prática de trabalhar com a realidade mais conveniente, emprestando aos fatos a versão que lhe interessa.

Por exemplo, faz parte dessa estratégia a versão de que as comissões parlamentares de inquérito se perderam em montanhas de dados e que nada afinal de contas ficou provado contra ninguém.

Se isso for repetido nos jornais, nas TVs e nas rádios, não demora vira uma daquelas verdades tacitamente pactuadas pelo natural desgaste do tema, mas que necessariamente não encontram correspondência na realidade.

O presidente usou ontem desse estratagema.

"O Brasil vive um momento em que as denúncias aparecem e não se concretizam", disse, chamando a atenção para a existência de "centenas e centenas" delas a respeito das quais "os deputados" estão tendo dificuldades em demonstrar substância.

Não é bem assim. Nesses quatro meses, a denúncia de que o PT tinha um esquema paralelo de arrecadação de dinheiro para financiar seu projeto de poder, incluindo o sustento de partidos da base de apoio, ficou largamente demonstrada.

Bem como ficou patente a falsidade dos empréstimos simulados para conferir origem legal aos milhões que transitaram pelas contas de Marcos Valério.

Temos também comprovado, e até admitido como infração mais branda por parte dos acusados, o largo uso dos "recursos não contabilizados".

A despeito dessa evidência, o ministro Márcio Thomaz Bastos conseguiu ontem condenar com veemência o uso do caixa 2, chamar a prática de "coisa de bandido", sem em momento algum ligar o nome à pessoa.

Talvez tenha imaginado que não se referindo a "recursos não contabilizados" estaria assegurada a distância entre o dinheiro ilegal do tráfico de entorpecentes e as verbas paralelas do tráfico de influência.

Boca torta

De tanto adotar a distorcida lógica do vale-tudo transgressor como sinônimo de habilidade política, algumas excelências adotaram o discurso segundo o qual a oposição "errou" ao fazer carga pelo afastamento de Severino Cavalcanti na presidência da Câmara.

Argumentam assim: ao perder a disputa para Aldo Rebelo, a oposição "permitiu" que o governo retomasse o controle perdido em fevereiro e, portanto, cometeu erro tático.

Acertado, por esse raciocínio, teria sido deixar o presidente da Câmara exatamente onde estava, mesmo tendo ele cobrado propina para deixar um restaurante da Casa funcionar.

Politicamente hábil, naquela interpretação, era fechar os olhos para atos e palavras, por mais impróprios, e até ilegais, que fossem, pois bem ou mal Severino Cavalcanti era um instrumento de oposição muito mais interessante, não importando os prejuízos políticos, morais e até sociais resultantes de sua permanência à frente da Câmara.

Os defensores dessa tese encontram-se entre os governistas e, embora não seja o único, o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha - integrante da lista de cassações - é um dos que enunciam o problema sob esse prisma.

Diz ele: "A oposição cometeu um erro. O Severino era um fator de instabilidade."

Ou seja, teria havido acerto político se os oposicionistas fizessem vistas grossas à prevaricação de Severino a fim de preservar seu potencial desestabilizador.

João Paulo e companhia adotam esse tipo de pensamento muito comum nas chamadas velhas (e ultrapassadas) raposas políticas sem perceber que o País é outro, e depois não sabem por que vão parar no banco dos reús.

No telhado

Embora Nelson Jobim diga que gosta de ser criticado, as contestações às atitudes do presidente do Supremo Tribunal Federal não têm o mesmo efeito positivo sobre a disposição do PMDB de patrocinar em alto estilo sua volta à política.